Dez Lexias

Ensaio Luís Carmelo

Lexia é uma fracção de sentido que se basta a si própria.

1 À revisitação quase sagrada do passado sucedeu um novo tipo de amnésia colectiva  que transformou a memória baseada em narrativas estáveis numa espécie de Lost Highway. A metamorfose do saxofonista Fred Madison, no filme de Lynch, não é a mesma que delongadamente aparece em Orlando (Woolf), ou que, por absurdo, se enuncia através de Gregor Samsa (Kafka): nela o passado é uma remoção quase normal ao serviço de um ‘agora aqui’ vertiginoso e sem inquietação de dúvidas, perguntas e explicações. A ficção cyberpunk vai mais longe neste passo que devora o território: sobra nela a ilusão da ilusão que mobiliza como protagonista o pós-homem criador de memórias diversas e jamais vividas (Bethke, Brunner, Burroughs, Cadigan, etc.). A virtualização surge aqui como essa enorme fábrica que confunde o implante com os efeitos que produz: a imagem corre na consciência e está noutros lados, ao mesmo tempo, dissociada da relação potência-acto. O acto e os tempos confundem-se. A amnésia instala-se e revê-se como uma normalidade. Desaparece assim de cena, definitivamente, aquele pasmo que Sebald evidenciara em Os Emigrantes.

de A Comunicação na Rede, 2006

2A interrupção do coito é um método clássico de precaução que nunca impediu um  vasto campo de possibilidades, mesmo as mais inesperadas. A expectativa de interromper o coito coincide com um horizonte fluido que tende a diluir-se no frémito do prazer, na tentação ad aeternum do acto e na entrega ao ilimitado. É por isso que a interrupção do coito sempre navegou, e há-de navegar, na incerteza do que, ao mesmo tempo, ‘é’ e ‘não é’. A partir dele, ou da intenção de realizá-lo, tudo pode irremediavelmente acontecer. O que o sustém é o que o alimenta e o que o prefigura é o que o trai. O coito interrompido é, pois, uma partilha tácita que pode, a qualquer momento, tornar-se no pasmo mais maravilhado da volúpia: uma rendição deslumbrada. A interrupção da leitura tem, hoje em dia, na rede um destino semelhante à clássica interrupção do coito. As coisas ligam-se quase cutaneamente. Não tanto pelo facto de a instantaneidade da rede poder sugerir – e sugere certamente – formas de desejo e de encantamento protéticas, mas sobretudo porque a rede é, ela mesma, uma amálgama de interrupções permanentes, devido às remissões que conduzem, segundo a segundo, aos links mais diversificados. Orgasmo nunca mais.

de Expresso Online, 2009

3A crise passou a ser o modo de revelar aquilo que faz o presente ser o presente.  Mas, ao mesmo tempo, enquanto inflexão não direccionada e não programática, a crise também passou a ser o horizonte que permite acompanhar os acontecimentos (as falhas) do mundo e o concomitante engendrar das redes (as dobras) onde tudo, ou quase tudo, se agencia. A crise como leitura, percepção e designação do mundo, mas também como formato interpretativo e significativo do mundo. Raramente um termo, concebido por ratio facilis, foi tão recorrentemente utilizado. Porventura porque as linguagens e os seus jogos não são capazes de acompanhar a celeridade do tempo que vivemos. A nossa cultura acaba por encarnar o paradoxo do ‘melhor dos mundos’ e da ‘maior das ameaças’ justamente por ter interiorizado a crise como a forma mais plausível de dizer o mundo. Este desconcerto que, na era apocalíptica, separava o presente do futuro acontece agora apenas na esfera do presente. Um espectáculo em que o palco e a plateia confluíram num único caudal.

de Genealogias da Cultura, 2013

4A literatura é uma arte que nos fala em silêncio, que nos soletra e que demora: uma arte que se submete ao santuário da tradição moderna e uma arte que, por ter renascido há pouco mais de dois séculos, tal como ainda a entendemos hoje, se tenta revelar como subjectiva (e quase romântica), propondo-se substituir o sagrado da “Escritura”pelo sublime da escrita. A ideia renovadora de criação terá aqui a sua origem: uma ideia sempre mutável, uma ideia feita de ziguezagues e correntes, contraculturas, muitos esquematismos e cânones. Mas sempre acompanhada por uma intimação que a foi reinventando: o fio ou o limiar da intensidade.

de A Luz da Intensidade, 2012

5A polifonia é o talento que diz todos os frutos da árvore, ao mesmo tempo. E os frutos, por mais luminosos que sejam, podem ser silhueta, esquina, música, céu, edifício, palavra, escultura ou até a simples palma da mão que se abre no meio de uma praça para crer que o futuro é uma nascente sem fim. Há raras fotografias que são polifónicas, mas essas, devido a um engenho de proporções, sabem imprimir os seus frutos como se fossem vozes que germinam a partir dos objectos mais irrealizáveis. Há uma desconhecida seiva que atravessa as topografias emudecidas de Álvarez Bravo. Talvez advenha da disposição, do ordenamento, ou do modo subtil como o vazio do alicerce se submete à simultaneidade profética. Futuro  realizável através de corpos e causas irrealizáveis. Um paradoxo feliz que aparece espelhado naquele diálogo de quatro de homens, ante o espantoso e surpreendente vazio do espaço. Preenchê-lo é uma arte da mais pura polifonia.

de Ficcionalidades de Prata, 2018

6No túmulo de Tutankámon, o chicote e o gancho ilustravam a velocidade e a sua tracção, sublinhando o atributo do grande guia, do primeiro timoneiro. O papel da cavalaria nas grandes batalhas, a função dos navios nos impérios dos últimos seis séculos, o caminho de ferro como épica de Dziga Vertov no tempo da guerra dos brancos ou o início da incursão alemã na primeira grande guerra mundial; o despique em torno dos foguetões na parte final da grande guerra mundial, ou a própria da guerra das estrelas de Reagan que foi o primeiro degrau do curto processo que deu origem ao fim do muro de Berlim. Toda esta vertiginosa sucessão, que não deixa de ser uma revolução contínua no espaço-‑tempo, corresponde, tal  como escreveu Virilio, à velocidade relativa. Mas outra é a velocidade absoluta. Hoje estamos quase a atingir esse patamar, pois as imagens digitais permitem que nos identifiquemos com aquilo que sempre foram os quatro atributos do divino, nomeadamente a ubiquidade, a instantaneidade, a omnividência e a omnipotência. Quatro muralhas que enformam o poder absoluto.

de intervenção no Festival de Óbidos, 2018

7Uma página de um romance tem que se sentir fielmente dentro do seu aquário, com a temperatura ambiente e a luz apropriadas aos seres vivos que apresenta, preserva e põe em acção. Não há um lado de fora, só existe um lado de dentro. Há muito que se sabe que representar é um logro, sobretudo num mundo em que as identidades se esbatem e em que tudo é cada vez mais um simulacro (e não um reflexo ‘real’ seja do que for). O rasto é afinal o plano inclinado que empurra silenciosamente a escrita para o lado de dentro desse aquário com paredes de vidro que tão bem simula o infinito ou, se se preferir, um indefinido – mas tão aparente – espectro de possibilidades. Essa página (que são todas as páginas de todos os romances do mundo) sabe que foi treinada para criar alguns impactos, de acordo com o seu próprio DNA que lhe concede uma matéria e um modo específico para a poder moldar. Enfim, essa especificidade possibilita rotações de diversos tipos, mas não deixa de ser uma especificidade.

de projecto Inaudito, 2018

8Um corpo nunca se imobiliza diante de um piano. O que o excede advém da poética, pois a voluntariedade dos dedos e a involuntariedade da restante expressão, estão em combate permanente. Veja-se o caso de Reinbert de Leeuw a interpretar Bach. Um corpo nunca se imobiliza diante da mesa do arquitecto, pois, desde o Tratado de Vitrúvio à sua releitura por Leonardo da Vinci e ao Modulor, teorizado por Le Corbusier, que ele sabe que as proporções do corpo humano já estão codificadas no seu ofício de edificação e de transmutação da paisagem. Um corpo também nunca se imobiliza, quando um escritor está com os dedos presos à caneta ou ao teclado, pois a poética é, justamente, o que advém da pulsão de todo o corpo (orgânico e inorgânico) sobre o aparelho da escrita. “Escrever é desabar”, tal como escrevi no Ofertório (2018), pois o que está em queda é sempre a largura do “exprimível” abatendo-se sobre esse sulco apertado por onde as palavras terão que ser canalizadas. O acto de escrita vive num terrível vaivém entre o poder da imaginação que não tem qualquer topografia e a necessidade de rigidamente o comprimir nas regras (que se definem menos pelo que autorizam a dizer e mais pelo que forçam a dizer e a ser).
O acto de escrita vive, num verdadeiro pas de deux, entre ‘Encandear’ e ‘Encadear’. Isto é: entre a perda momentânea de visão que é, ao mesmo tempo, a iluminação e a captação do indizível de quem escapa ao quotidiano e à rotina (era o que fazia o poeta holandês Remco Campert dizer “escrevo quando sinto que não pertenço”) e acção de prender essa iluminação, modelando-a, policiando-a e organizando-a em cadeia, ou, se se preferir, em linha do texto. Estamos aqui entre a metáfora da candeia e do cadeado. Nem na cadeia, nem no cadeado, mas entre ambos.

de A Corporalidade da Escrita (intervenção na liraria Unicepe, Porto), 2018

9A poesia vive do sentido e coloca-o, ao mesmo tempo, como o mais inalcançável dos dons. Tal como acontece com a armadura que não conhece o corpo que a dobra. Segue-o e tem-no na medida dos seus desígnios, mas isenta-o e tem-no, também, como absoluta ficção. A realidade (ou o dizer) da poesia confunde-se com o rumor (ou com a construção) da linguagem que dela jamais se apeia. O que por vezes se referencia, afasta-se. O que geralmente se inventa, aproxima-se ou funde-se (com a letra do poema) e quase deixa de se ver. A bissetriz resultará em transfiguração.

de Uma Infinita Voz, 2016

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0Dizer que se gosta de gatos, de omeletes mal passadas ou de filmes rocambolescos não é algo que aconteça à parte das nossas motivações pessoais. Gostar é concretizar um ânimo; congelá-lo, se for preciso. Na larga maioria dos casos, quando se gosta, a finalidade e o desejo sobrepõem-se ao prazer desinteressado. Se gosto de almoçar no restaurante Carrossel, é porque lá regressarei (nem que seja através da memória). Também é verdade que, ao gostar-se seja do que for, estamos sempre a aspirar a uma partilha. Espera-se sempre do outro lado que haja um acordo, algo em comum ou uma concórdia (ainda que apenas possível) por parte de alguém. Até o gosto pela natureza me parece francamente interessado, porque eu próprio sou a natureza que mais admiro, sejam os pinhais, o mar ou a noite que cai, na medida em que a trago comigo e, na minha intimidade, sou constituído em grande parte pelo que ela imaterialmente me concede. Gostar é um modo híbrido, mas não cognitivo, de exprimir e de enfunar o mundo, pois nele se comprimem afectos, disposições imediatas, tentações, mas também, necessariamente, alguma normatividade (dê por onde der, não existe recanto do universo em que o humano não seja falado através de regras e das linguagens que estão ao seu alcance). Dito isto, confesso que gosto muito de romances. Mas não de todos os romances. Com o tempo, a vontade de ler romances vai-se cingindo cada vez mais a um número muito restrito. Essa impiedosa geometria criada pelo gosto também pressiona – e de que maneira! – a minha própria oficina de escrita. E nem sei bem porquê. O gosto tem os seus mistérios e há que saber respeitá-los sem grandes inquirições.

de Retrovisor (crónicas no Hoje Macau), 2020