Entrar pelos dias adentro

Ensaio António de Castro Caeiro

Éjá com os olhos postos no fim da situação de emergência que a vida vibra a sua tonalidade. Submergimos nas águas profundas da quarentena colectiva, para agora emergirmos à superfície, como se estivéssemos num gigantesco submarino, em direcção à orla marítima, para aportar onde pudermos. A quarentena obrigou-nos a uma metamorfose da vivência quotidiana. Teve um começo, uma duração e fim. E nós tivemos uma relação, comportamentos e atitudes relativamente ao começo da quarentena antes de ter propriamente começado, no interior do seu horizonte, antes e depois de ter oficialmente acabado. Não estamos sempre à espera de tudo o que acontece. É por isso que somos surpreendidos pelos acontecimentos. Ultrapassados por eles. Mas neste caso pudemos preparar-nos. Projectamos em antevisões cenários, antecipamos consequências, hora a hora, dia após dia. Há uma antevisão ou, pelo menos, uma tentativa de previsão dos acontecimentos que irão dar-se com a nossa entrada em quarentena. A “entrada” não é compreendida como a deslocação espacial de um exterior para um interior apenas. É temporal: vamos submergir durante uma temporada, por uma estadia, nas mais diversas estâncias que serão escolhidas para fazermos a quarentena. É nesta submersão que importa meditar. As reflexões que se seguem resultam das mais diversas possibilidades de relação, atitude e comportamento com a temporada que fizemos, cada um à sua maneira, de acordo com as circunstâncias, contingências, necessidades, a sós ou em conjunto, com amigos, estranhos ou familiares. As mais diversas relações que se estabelecem projectam as mais diversas atitudes de onde também são motivadas, plasmam-‑se nos mais diversos comportamentos antes, durante e depois da quarentena entrar, estar e deixar de estar em vigor. Esta é a primeira nota da meditação a sublinhar desde já. Submergimos, com a entrada em quarentena, numa dimensão temporal diferente daquela em que habitualmente temos vivido. À superfície procuraremos ter um quotidiano como o procuram ter as populações que vivem em zonas de guerra. Há uma vida para além dos bombardeamentos. Há uma vida que se quer fazer vingar, a despeito do medo. Uma vida que nasce contra o medo. Há também um “mergulho” nas águas profundas da vida. Para se perceber objectivamente a não coincidência entre as datas fixadas com hora marcada para entrar em – e sair de – quarentena basta a indicação óbvia para todos que espontaneamente os portugueses recolheram antes das disposições das autoridades e começaram a “quebrar” o estado de emergência antes de tempo. Do mesmo modo que se deu uma entrada espontânea em quarentena como uma medida profilática tomada colectivamente, também houve uma saída de quarentena não coincidente com as determinações das autoridades. Também do ponto de vista mental (psicológico, sociológico, afectivo, emocional, pessoal, profissional, individual e colectivo) , houve antecipação da quarentena como possibilidade remota, como possibilidade real, como possibilidade eminente, como possibilidade efectiva, como realidade. Olhamos para a temporada de quarentena em tentativas de antevisão, com os prognósticos possíveis, proactivamente, em prospecção da realidade porvir. Olhamos para a quarentena com a percepção da realidade que se constitua hora a hora, dia a dia. Olhamos retrospectivamente para a quarentena como o que foi vivido, os estragos que fez, os danos que causou, doentes e mortos, famílias apartadas ou famílias juntas, desemprego, reinvenção do quotidiano e de formas de vida, de ganhar a vida, de passar o tempo. Há um fim por decreto da quarentena. Não é o fim do mal que levou ao fecho do País. Mas é o fim de uma organização particular dos dias, absolutamente singular na nossa vida colectiva como povo, com um alcance geográfico imediato no continente e nas Ilhas e em toda a região do mundo onde houvesse um português, não por ser português mas por ser humano. Com o levantamento do estado de emergência e a sua passagem a estado de calamidade com hora e dia marcado, produz-se uma transformação na arregimentação da vida colectivamente determinada na comunidade. A quarentena passa a ser uma temporada que pode ser reintroduzida, mas a primeira já passou. É uma estadia em bloco na estância existencial onde tivermos passado estes dias das nossas vidas, a fazer o que fizemos. A semana seguinte terá uma agenda diferente da que temos tido até aqui. Há espaços públicos que vão sendo abertos, ainda que não todos ao mesmo tempo. As pessoas vão começar a sair de casa. Vamos ver as ruas com carros, os passeios com transeuntes, mais gente fora de casa do que a que temos visto. A semana que vem vai ser diferente desta semana. A parte final desta semana já foi diferente da semana anterior. Se compararmos as duas últimas semanas com as semanas imediatamente a seguir ao fecho, temos uma impressão de diferença total da atmosfera dos dias, da psicologia das pessoas, do estado emocional em que cada um de nós se encontrava. Já lá iremos. Estivemos durante, sensivelmente, dois meses de quarentena. Ainda nada tinha fechado e já se sentia o inevitável a aproximar-se. Era uma aproximação que se sentia colectivamente. Havia sem dúvida várias posições prós e contras, mas a certeza de que o País iria fechar, ainda que não se soubesse ao certo quando. Era uma questão de dias, primeiro. Depois, foi de horas. Havia no ar uma sensação de estranheza. Estávamos a par do que se passava em Itália, mártir, e Espanha, não menos vítima. Sabíamos que o vírus podia entrar por qualquer fronteira trazido por um cidadão ou por um estrangeiro, por alguém que nos visitasse ou por quem quer que tivesse ido ao estrangeiro. Era uma questão de horas. Uma crónica de uma contaminação anunciada. De facto, a crónica de uma epidemia pandémica anunciada. Vários serviços vão fechando. As escolas e universidades fecham, crianças e jovens vão para casa, onde ficam. Os pais e adultos não ficarão muito tempo sem fazerem o mesmo. O País vai fechar. Não se vê vivalma. Os restaurantes fecham. O comércio fecha. Só os supermercados se mantêm abertos. A cidade parecia véspera de Natal à noite e o mês de Agosto que conheci há décadas. Não havia ninguém. A cidade estava ainda mais despovoada. Não fora FB, Instagram, Twitter a fazer o barulho e mesmo alarido, a manifestar a existência das pessoas, e não saberíamos uns dos outros. Mas o contraste era evidente nesta estadia de quarentena. Havia a cidade despovoada que parecia uma cidade fantasma, sem vivalma, sem ninguém. Havia o que se adivinhava atrás das fachadas dos prédios, nos apartamentos cheios de pessoas, que vinham à janela e em cada prédio comunicavam entre si. Com os olhos agora postos no fim da situação de emergência compreendo a quarentena como uma estada, uma grande estada de dois meses que era quase a mesma duração quase das férias grandes do mundo entre anos lectivos na minha juventude.
Só que agora em vez de as passar em estâncias balneares, de ski ou termais, passamo-las no mesmo sítio onde estamos nesta altura do ano. A estadia foi também numa estância, uma estância localizada no seu sítio habitual, mas completamente diferente, metamorfoseada, totalmente transformada: na nossa casa, no nosso prédio, no nosso bairro, na nossa Junta de Freguesia da Cidade de Lisboa. É tudo o mesmo e,
não obstante, tudo ficou diferente, alterado, transformado. 

Os dias de quarentena na situação de emergência são como uma estadia passada numa estância. Esta estância não requer deslocação. É a nossa própria casa. A estadia não é de férias. Há várias estadias diferentes das das férias. Em hospitais e prisões. Nas estadias, pressupomos que os dias que lá passamos são diferentes dos dias vividos habitualmente. Não apenas porque os dias são passados em lugares diferentes daqueles em que os passamos, mas porque têm horários diferentes, são passados com agendas diferentes, forçando até o calendário. O que nos aconteceu com a covid19, com o novo coronavírus, foi uma estadia forçada numa estância conhecida, em que os dias vividos foram diferentes dos dias habitualmente vividos nas nossas vidas. Estão ainda a sê-lo, mas temos de perceber a metamorfose por que passaram as nossas vivências dos dias, como temos experiências diferentes dos dias antes, durante e depois do estado de emergência. Há diferentes percepções da realidade dos dias quando nos aproximamos temporalmente da quarentena, como assistimos nos media, como sentimos o pulso da realidade nas ruas através dos nossos concidadãos, no trabalho, nos locais públicos. Sentimos a realidade metamorfosear-se, os dias alteravam-se hora a hora, minuto a minuto. Estávamos continuamente à espera de saber o que iria acontecer, se as escolas e universidades fechavam ou não, se as salas de espectáculo, museus, ginásios fechavam ou não, se a cidade fechava ou não, se o País fechava ou não. Não fechar ou fechar não deixa alternativa. Percebe-se a lógica implacável vivida na indefinição. Depois, quando se decretou o estado de emergência, há vários momentos, etapas que resultam da reacção imediata ou menos imediata, primária e secundária ao facto consumado. As pessoas reagem individual e colectivamente de modos diferentes. No decurso do tempo, à medida que o tempo vai passando, e que o início da situação se distancia, há uma habituação à estranheza, cria-se um quotidiano. Sabe-se o que fazer. Há uma novidade a princípio. A novidade esbate-se. Sabe-se que os supermercados estão abertos, ainda que com horários diferentes e com filas de clientes à porta. Os talhos estão também abertos. Depois, convivemos com a estranheza.

A estranheza passa a fazer parte da vida. Todo o gesto é um gesto feito com cuidado. E depois parece ser feito como se desde sempre não nos cumprimentássemos e fôssemos como os orientais no trato do corpo alheio. Fazemos vénias e não nos abraçamos, apertamos mãos ou beijamos na face. Fazemos do afecto cerimónia.

Mas já cá voltamos, a esta estranheza de fazermos da estranheza um hábito e uma segunda natureza. Há assim, tal como em todas as estadias onde quer que as passemos, diversas etapas, diversos momentos, a partir do começo, mas que não podem ser vistas nunca só a partir do começo. Como acontece com todos os fenómenos temporais, também temos de tentar perceber a estadia na estância da quarentena a partir do núcleo duro, do olho do furacão em que se constitui. É um olho móvel. Tem um epicentro, a partir do qual se move. Desloca-se num movimento centrífugo para diante, fazendo estragos na periferia, deixando de ter efeito para lá da zona limítrofe do seu alcance. A estadia na estância da quarentena da situação de emergência provocada pela epidemia pandémica tem o olho do seu furacão em movimento no interior do tempo em que se forma. É esquivo e difícil de identificar. Identificamos o primeiro caso relatado no dia 17 de Novembro de 2019 em Wuhan, na China. Há uma relação de causa a efeito, mesmo que remota, entre este caso e o correspondente estado de emergência e quarentena na China e noutros Países até chegar a Portugal. É evidente que há um nexo causal. Este caso declarado pode pressupor muitos existentes não reportados, mesmo que na imediação temporal. Mas o fecho de Portugal resulta da aproximação geográfica, do que acontece em Itália e depois na vizinha Espanha. O inimigo está na fronteira e depois está às portas de Lisboa. Monta o cerco. A relação é de protecção e segurança. A relação não é causal. Não é com o passado remoto de 17 de Novembro de 2019 mas com a iminência futura e na verdade com a mera possibilidade tornada séria, portanto, possibilidade não preguiçosa porém eficaz, viva, do que pode e vai acontecer.

Não é a lembrança do passado que nos faz montar a guarda, mas o receio, o medo, a preocupação, o cuidado com o futuro o que nos leva a montar essa mesma guarda. O epicentro da doença pode ter estado geograficamente na China e pode ter sido em Novembro do ano passado, depois foi Itália a 1 de Janeiro, mas com alarme a 20 de Fevereiro, e Espanha a 31 de Janeiro e 24 de Fevereiro, e depois princípio de Março. Agora, é Portugal a 2 de Março. Estes dias são datas que se relacionam umas com as outras sem dúvida e parecem ser a causa dos acontecimentos que datam da quarentena e do estado de emergência. Mas projectam em antecipação o que pode vir a acontecer, montam pragmaticamente a guarda ao que pode vir a acontecer e o que pode vir a acontecer é o pior de tudo, a morte de cidadãos, a morte dos nossos concidadãos, a morte dos nossos, a nossa própria morte. O epicentro, o olho do furacão, desloca-se da realidade geográfica em que estava localizado e do tempo em que se manifestou, ou melhor, das realidades espácio temporais em que se manifesta, para a possibilidade iminente a partir de onde pode atacar. A realidade da virologia é a da vida. Só o que é inorgânico tem o tempo estratificado em passado, presente e futuro. O passado é passado, o presente é presente e o futuro, futuro. Mas a vida não é assim. O vírus está e existe onde está, e existe um ser humano que é portador dele. É por isso que o vírus só existe onde existe um ser humano. As geografias e os tempos do vírus, o epicentro da epidemia pandémica é o ser humano, um ser humano. É do ser humano que vem o perigo e é por isso que o olho do furacão é identificado e reconhecido pela complexa relação entre os seres humanos e pela discriminação dos contactos possíveis em que há contaminação e os contactos possíveis que neutralizam essa contaminação. É importante saber que o normal é que os seres humanos se dêem com outros seres humanos, convivam uns com outros, coexistam. Viverem afastados uns dos outros vai contra a natureza humana, é uma situação fora da regra. Assim, é importante a discriminação que leve a uma selecção positiva de comportamentos que não são de risco e comportamentos que são não apenas evitáveis mas interditos, proibidos. A quarentena é a estadia que tem como horizonte este tempo que se pretende constituir como um campo de forças blindado contra a contaminação. Os dias vão ser organizados em função do futuro que espera por este inimigo, tentando evitar, sem se distrair, o contacto com ele. Não se trata de evitar o contacto a todo o custo, o que sacrificaria a humanidade. Trata-se de compreender a natureza dos contactos com os outros, com os outros próximos com quem vivemos, a quem laços estreitos nos unem, para evitarmos o contacto mas não para evitarmos o afastamento definitivo se puder ser contornado. O perigo é diário. O perigo é contínuo. É por outro lado futuro, eminente. O epicentro tem geografias variáveis e o seu tempo é o futuro, a nossa atitude é a da vigilância na expectativa. Melhor: o epicentro é qualquer ser humano. Há tantos epicentros potenciais quantos os seres humanos que encontramos se não forem adoptadas as medidas necessárias para nos protegermos. Protegermo-nos e protegermos os outros. A relação com os outros, o comportamento que funda e define a relação com os outros é o cuidado a ter com eles, o cuidado a ter connosco na relação com eles e o cuidado a ter com eles na relação connosco. O que importa perceber é que o “distanciamento social” é o distanciamento suficiente para que não estejamos vulneráveis aos miasmas dos outros nem os outros aos nossos. Tem de se respeitar o protocolo. O protocolo deve obedecer ao que se sabe cientificamente e o que se sabe cientificamente muda hora a hora, como é sabido. Por outro lado, a adopção de medidas para quando o contacto não pode ser evitado ou entramos dentro da zona de contágio, como luvas e máscaras, para além da higienização: lavar as mãos e não levar as mãos ao rosto indicam um conjunto de regras a porem-se em prática que cada um deve observar. Este conjunto de regras é como que o bilhete para a autoimunidade, para a protecção relativamente aos outros e para protegermos os outros de nós próprios. E as regras não podem ser afrouxadas. São poucas, mas têm consequências em todos os gestos do dia a dia. 

Cada um de nós tem de criar uma bolha protectora para onde entra. Não é apenas imaginária. Tem consequências práticas. Por norma, criamos distância entre nós e qualquer pessoa, sobretudo aqueles com quem vivemos em casa. E ao princípio, sem saber se estávamos infectados, a cerimónia era muita ou nenhuma. Nenhuma se achávamos que não havia nada a fazer, por saber que dada a vida comum estaríamos infectados. Era muito o cuidado quando achávamos que podíamos proteger aqueles com quem não tínhamos convivido e eram os mais próximos de nós. A vida encarregava-se também de fazer as suas combinações mais improváveis. Trazia do estrangeiro quem lá vivia. Juntava na mesma casa estranhos. Afastava pessoas que supostamente deviam estar juntas. Era a vida a ser vida. 

O afastamento tinha de ser a regra. Nada podia ser deixado ao acaso. Na antecipação do que estava para acontecer, ainda antes de ter sido decretado o estado de emergência, já as pessoas se precaviam. Algumas açambarcavam tudo o que podiam nos supermercados, como se estivessem a preparar-se para a guerra ou para uma crise duradoura. Outros mantinham a calma. Mas todos estavam virados para um futuro a ser decidido nas horas que estavam para vir. Havia muita preocupação. Uma preocupação que era colectiva, sobretudo para quem trabalhava em serviços com muita frequência de público: escolas, universidades, espectáculos, comércio, transportes públicos, serviços públicos em geral. 

As pessoas iriam para casa. Era como ir de férias. Era uma estada de férias, não numa estância de férias, mas em casa. Era parecido com uma estada num hospital ou quando na infância tínhamos varicela ou sarampo. Ficávamos em casa mesmo no meio do Verão. Não havia férias para ninguém. A estância balnear fechava e a nossa mãe tinha a estadia na estância balnear anulada para ficar connosco em casa. Uma estadia em casa por doença é diferente de uma estadia no hospital. Uma estadia em casa por uma doença que não se tem ainda é muito diferente de uma estadia no hospital por causa de uma doença que se tem. Uma estadia em casa por uma doença de que não se padece mas de que pode padecer-se, não de um só membro de uma família mas de todas os habitantes, afectando todas as famílias portuguesas é do que estamos a falar. 

O que estava para vir era uma incógnita mas havia a expectativa de qualquer coisa que tinha em si a novidade. Nenhuma novidade é sem entusiasmo. Sim: havia o fecho da economia. Pessoas iam para o desemprego. Havia dramas tremendos que seriam vividos. Mas ainda não. Não nas primeiras horas de antecipação apesar de toda a preocupação. A novidade era a da preocupação mas era também o resultado de uma mobilização global e total para a guerra, uma espécie de partilha colectiva a que os portugueses não estão habituados, a humanidade, então, nem falar-se. Essa mobilização em torno da saúde contra a doença, com um inimigo comum a evitar, em prol da saúde, da salvação, da preservação de forma global, em concreto a ser experimentada hora a hora em todos os países, com notícias para quem as queria, penso que será inédito. Todos sem excepção estavam afectados. Todos se sentiram vulneráveis. Houve, há e haverá sempre negadores, os que destruidores, os que atentam contra a humanidade. Contra eles há a ridicularização, mas deve haver a criminalização. Todos estavam num mesmo barco. Onde quer que houvesse, onde quer que haja um ser humano, há a possibilidade de uma hospedaria para o vírus e, por isso, a possibilidade do contágio. 

E vamos todos para casa. E os dias começam a trabalhar-nos. 

Entramos pelos dias adentro. O que mais me impressionava eram os sons da cidade. Não ouvia os elétricos passarem, não ouvia os carros descerem a minha rua, por isso, nem de tráfego podia falar, não ouvia os automóveis nem os comboios passar na ponte 25 de Abril. Nem troca de palavras entre pessoas se ouvia. 

Via os boletins noticiosos, que deixei de ver porque me deixavam num estado ansioso. Estava frio em Março. Não se antecipava nada. Depois dos primeiros dias, sem saber bem como haveria de funcionar, descobrimos a aplicação ZOOM. Depois de resolvido o acesso, a transição de uma semana para a outra fez-‑se a correr sobre rodas. 

Mas os dias não foram apenas o horário repetido de todos os dias até ao dia 3 de Maio. Eu repeti tudo isto até ao dia 3 de Maio, mas o que se passa no interior da vida de cada pessoa, nas vidas das pessoas com quem eu me dou e que são as minhas pessoas, é infinitamente mais complexo, infinitamente mais dramático, mais rico, irredutível. Vem com os dias. 

Um dia reveste o corpo, transforma o corpo como se virtualmente estivéssemos a ser afectados por pensamentos que produzem fantasias de teor sexual ou sonhos sanguinários de vingança. A situação é imaginada em antecipação e projecta previsões, delineia configurações que se fazem sentir através de disposições vibrantes, fluídos atmosféricos e ambientes que alagam todo o nosso ser. Mas, para lá disso, há uma ligação entre cada dia e a sua própria musicalidade. Cada dia tem a sua tonalidade. Mas como cada frase musical tem a sua nota, também todos os momentos do dia têm as suas notas soltas ou já compostas uma com outra ou uma única em diferentes durações.

Um dia é como um pensamento. Um só dia tem muitos momentos. Um só pensamento tem muitos pensamentos incluídos em si, outros próximos de si, outros pensados consigo e que nada têm que ver consigo. Vamos nas horas como vamos nos dias e vamos nos pensamentos. Ou ao contrário. As horas entram por nós adentro, os dias entram por nós adentro, como os pensamentos entram por nós adentro.

Qual a estrutura de um dia de quarentena? Qual a estrutura dos dias na temporada da quarentena? Como é que essa temporada afectou o espaço em que habitualmente vivemos, transformado em estância existencial para viver a quarentena? Como foi o primeiro dia? Como foram os primeiros dias? Como foi o transcurso já no período, no meio da quarentena, passados já muitos dias depois de ter sido decretado o estado de emergência e como foi a aproximação do fim? Cada dia traz consigo a sua tonalidade própria. A quarentena tem a sua tonalidade própria composta a partir dos múltiplos dias vividos pelos cidadãos de Lisboa, Portugal, habitantes do planeta terra. Houve tantos dias diferentes quantas as pessoas que habitam o mundo. Cada pessoa é um conjunto de relações possíveis com os dias de quarentena, com consequências concretas para a sua vida. Cada dia como cada pensamento tinha o seu tom: recolhimento obrigatório, portanto, não sair de casa. Tudo passou a ser feito em casa e a partir de casa. Deixou-se de se fazer o que se fazia fora de casa. Nada do que se fazia fora de casa e que não podia ser feito em casa a partir de casa podia ser feito. Cada dia tinha esta condição determinante. Quando se saía de casa, ia-se às compras ou fazer o pouco que era permitido fazer. Mas sair era uma excepção à regra. Portanto, o que podia ser um pensamento: um dia em casa sem poder sair à rua prolongado por muitos dias, alastrado a toda uma população, passou a ser a realidade. A determinação do decreto é um pensamento transformado em realidade. A vontade autónoma de ficar em quarentena é um pensamento que transforma os dias e isso quer dizer que transforma a forma e os conteúdos biográficos dos dias. Não poder sair implica não ir a locais onde se encontra quem encontramos nesses locais, ir aos sítios onde vamos para fazer o que lá fazemos. Os dias são vividos com o pensamento da interdição ou da proibição, mais com o que não se pode fazer do que com o que se pode fazer. São vividos também com o conjunto todo de regras e protocolos de higiene que temos de seguir e observamos de bom grado. Mas os dias repetem-se com disciplina ou indisciplina. Há quem se entretenha ou não consiga estar a sós consigo. Há quem goste de estar na companhia de outros. Há quem goste dos outros mas necessite de distância existencial. Seja como for, as relações sofrem distanciamento e aproximação que não se reflecte na correspondente distância afectiva. A suspensão das vidas de cada uma das pessoas tal como era vivida até à quarentena, momentânea ou definitivamente, em termos profissionais, familiares, desportivos, na saúde e na doença, na vida individual e colectiva, oferece uma dupla possibilidade.

A vida para e fica à nossa frente para vermos o que tem sido, sem estarmos lá metidos nela a ser os seus funcionários, sem margem de manobra para perguntarmos o que estamos a fazer e sem podermos verdadeiramente equacionar a hipótese de sair com o comboio da vida em movimento. A vida descarrila.

A vida que levamos continua a seguir mas não à mesma velocidade, o que dá para olhar para ela enquanto a executamos ao mesmo tempo. É uma possibilidade ímpar. A vida em todas as suas possibilidades e dimensões, em todas as suas frentes, passado, presente e futuro, em todas as suas ligações, com o mundo, com os outros, com o si mesmo, numa palavra a vida no seu ser passa a poder ser vista quase parada e em movimento. A quarentena é um “atraso-de-vida”, uma “perda-de-tempo”, uma “adversidade”, um “contratempo”. A vida continuou e tem continuado e continuará de forma inexorável. Mas a nossa vida fica em suspenso nos seus projectos tal como estavam a ser postos em prática. Assim como os dias que custam a passar nos obrigam a pensar na vida, uma quarentena é uma colecção de dias, uma temporada, uma estadia, na estância existencial em que a vida se perfila deslocada, fora dos seus eixos habituais. Obriga-nos a pensar nela ao mesmo tempo que nos permite uma concentração no que fazemos e no que somos, num emprego do nosso potencial de uma forma absoluta. 

O que vai acontecer agora? Há um quadro negro na antecipação, na antevisão económica e financeira. Está já aí a crise. Tantos desempregados. Quando os outros não estão bem, nós não podemos estar bem. Não é apenas mental. É de facto. A crise vai rebentar-nos na cara. A possibilidade da infecção com o novo coronavírus não desaparece por decreto. As pessoas vão regressar à rua. Haverá quem experimentou o dia pensamento, o dia pensante. Haverá quem viu a face oculta dos dias de todos os dias, quando está a trabalhar. Os dias da casa quando ninguém lá está para ver como a casa é, como vivem os velhos e as crianças e quem cuida deles. A vida das paredes que também têm vida ressuscitou nestes dias que cá temos estado. Despegaram-se cheiros das roupas dos antepassados que os puseram no nosso quarto de dormir ao pé de nós de uma forma tão presente que nos acordaram. As ruas regressaram de onde estiveram congeladas cronologicamente há 50 anos. O mesmo céu azul, as mesmas árvores. Às vezes era a rua dos anos 1990. Mas vinha sempre a rua de hoje, a casa de hoje, eu hoje, o hoje pensante, o pensamento que me reveste e se estende ao globo, eu universal global, tubular. 

Nunca saí da quarentena e estive sempre exposto à epidemia pandémica ameaçadora de morte. Cada humano é portador da morte, da vida, do amor e do ódio, cada humano é portador da impossibilidade e da possibilidade. Cada humano é à escala universal. Cada humano é eminentemente à beira de deixar de ser, está nesta estada, no mundo como estância, vulnerável e exposto. 

A quarentena pode ter sido um laboratório para o termos compreendido e pensar a possibilidade que nasce do confronto com a impossibilidade.