Poema épico-pandémico

Poesia Rita Taborda Duarte

Um poeta tem de escrever  sem se  poupar aos versos 
em tempos de martírio     Um poeta tem de escrever 
com quantas letras  traz na boca    
Um poeta se  tomba  escreve de  bruços 
na trincheira    O poeta  há-de mostrar 
com quantos versos se faz uma cangalha.     

O poeta retira a louça limpa da máquina de escrever,
arruma os talheres no percurso da rima 
e volta a pôr    no verso   a louça  suja 
empilhada na pia    Um poeta tem de escrever 
o suficiente ao almoço  para sobrar comida 
para o jantar,

isto se não tiver um terceto de filhos
a devorar-lhe os sonetos ainda dentro dos  sacos 
que  o poeta carrega  do supermercado 
com as patas da frente

Os poetas  com versos únicos  sobrevivem  muito melhor à peste do dia-a-dia….

Um poeta tem de escrever Lisboa 
remanchada num remanso  às moscas
e aos velhos que ninguém atura 
nas ruas descampadas   Um poeta 
tem de escrever o engarrafamento 
no corredor da ponte entre a sala e a cozinha  
tem de escrever a população sem dentes 
envelhecida  e o aumento demográfico do sofá. 

O poeta aspira os pulmões aos livros que não lê
e inspira fundo os tempos de fadiga
sem dar à sola  nem ao pedal ou à pata   à asa 
como os pombos e  outros animais. 

O poeta tem de bater com estrondo a porta da linguagem     
trancá-la bem por dentro:    Um poeta tem de escrever 
a métrica  centrifugada dos lençóis
encharcados nas ventas  da poesia.

O poeta tem de escrever em tempo de pandemia,
deve resistir escrevendo porque   um poeta 
não se verga, não se cala e é inicial limpo e inteiro
como os dias que hão-de vir e pelo menos tão alto
como  todos os outros galgando a barroca das letras.

Um poeta tem de escrever.

E só  deve baixar os versos
para chafurdar a esfregona no tinteiro.