Onde vai o poeta
encontrar a ironia nas rasteiras do universo?
Um poeta devia; não tem de.
Caminhar seguro, por exemplo, que de formoso
o poeta não pode ser acusado. Faz comichão aos versos,
que ele sacode do dorso, o espanador em punho.
Como exigir-lhe que seja inicial, limpo e inteiro
se está ainda a decifrar o rascunho da besta?
Se tudo o que arranca da primeira pedra
onde se esboçaram traços e sentidos possui a forma tosca
de um prato esbotenado e mal lavado, os restos de comida feitos crosta?
Tem muitas feridas, o poeta; é por aí que lhe entram os vírus.
Por isso, o poeta respira cada vez menos, já nem sequer cospe
a palavra. Vai-se a ver e nem de máscara precisa.
Por ele, e para nossa salvação, ninguém será contaminado
de bom-senso e boas maneiras.
O poeta é o próprio rosto —
nu de tanto levar com lençóis lavados nas ventas.
Estica-os para poupar ferro,
para iludir rugas.
Se o estado é de emergência, o poeta decide
rodear-se de seres mais frágeis, mais verdes.
Enche-se de plantas até ao cúmulo da desinspiração:
são os versos que desistiu de escrever.
E assusta-se — muito, tanto — com a quantidade de água a despejar,
não é bom de cálculo, nem suave de mãos, e uma folha é uma folha,
como lhe assentará na proporção devida a palavra
água? De quanto precisa para virar poema?
Tem sede, o poeta. Sem tempo de a matar.
Aprende a adubar e podar, a enfiar o dedo na humidade do solo.
Porém, duvida sempre: demasiada água, quer dizer, palavra
destrói-lhe as raízes. E o poeta, sempre instável,
tomba de incertezas, treme de receio:
que farei eu com tanto verde?
Melhor seria sair de mansinho da folha, virar de página rumo à prosa,
arranjar um canto onde espiar o erro e o destino, contabilizar partículas de pó,
numa equação eterna onde se somam as que agora lhe escorrem
pelo tédio abaixo.
Limpá-las todos os dias é sintoma de loucura.
Está muito doente, o poeta; é por aí que se vê sozinho.
Até que lhe chega a descendência a casa:
multiplicam-se os copos de água, proporcionais às hipóteses de erro.
Um chuto na bola, quebra-se uma planta
e, se de um lado jorra água, do outro, pulsa sangue: o ponto certo
de cozinhar o bife, encomendado num talho sem nervos,
só distância. Quanto mais rijos os filhos, mais tenra a carne.
Filhos e folhas murcham à medida que não são feitos, regados.
A calamidade desprende-se da planície da casa. Persegue
a paranóia do poeta, cada vez mais pálido, cada vez mais montanha
na sua fuga para o telhado. Escalou com o fardo das dúvidas, das dívidas,
às costas; e dali avistou apenas vidros sujos
de poeira e chuva.
O poeta saca do pano: cai no abismo
de uma nova limpeza. Compreende que as pessoas,
como a louça e os vidros,
as palavras e o silêncio,
não são suas para moldar.
Quando isto acabar, o poeta será selva.
E eu: ou mato ou morro.