Réplica pandémica para uma calamidade mais verde

Poesia Inês Fonseca Santos

Onde vai o poeta 
encontrar a ironia nas rasteiras do universo?

Um poeta devia; não tem de. 

Caminhar seguro, por exemplo, que de formoso
o poeta não pode ser acusado. Faz comichão aos versos,
que ele sacode do dorso, o espanador em punho.

Como exigir-lhe que seja inicial, limpo e inteiro 
se está ainda a decifrar o rascunho da besta? 
Se tudo o que arranca da primeira pedra
onde se esboçaram traços e sentidos possui a forma tosca
de um prato esbotenado e mal lavado, os restos de comida feitos crosta?

Tem muitas feridas, o poeta; é por aí que lhe entram os vírus.

Por isso, o poeta respira cada vez menos, já nem sequer cospe 
a palavra. Vai-se a ver e nem de máscara precisa. 
Por ele, e para nossa salvação, ninguém será contaminado
de bom-senso e boas maneiras. 
O poeta é o próprio rosto —
nu de tanto levar com lençóis lavados nas ventas. 
Estica-os para poupar ferro, 
para iludir rugas.

Se o estado é de emergência, o poeta decide 
rodear-se de seres mais frágeis, mais verdes.
Enche-se de plantas até ao cúmulo da desinspiração: 
são os versos que desistiu de escrever.
E assusta-se — muito, tanto — com a quantidade de água a despejar, 
não é bom de cálculo, nem suave de mãos, e uma folha é uma folha, 
como lhe assentará na proporção devida a palavra 
água? De quanto precisa para virar poema? 

Tem sede, o poeta. Sem tempo de a matar. 
Aprende a adubar e podar, a enfiar o dedo na humidade do solo.
Porém, duvida sempre: demasiada água, quer dizer, palavra
destrói-lhe as raízes. E o poeta, sempre instável,
tomba de incertezas, treme de receio: 
que farei eu com tanto verde?

Melhor seria sair de mansinho da folha, virar de página rumo à prosa, 
arranjar um canto onde espiar o erro e o destino, contabilizar partículas de pó, 
numa equação eterna onde se somam as que agora lhe escorrem
pelo tédio abaixo. 
Limpá-las todos os dias é sintoma de loucura.

Está muito doente, o poeta; é por aí que se vê sozinho.

Até que lhe chega a descendência a casa:
multiplicam-se os copos de água, proporcionais às hipóteses de erro. 
Um chuto na bola, quebra-se uma planta 
e, se de um lado jorra água, do outro, pulsa sangue: o ponto certo
de cozinhar o bife, encomendado num talho sem nervos,
só distância. Quanto mais rijos os filhos, mais tenra a carne.

Filhos e folhas murcham à medida que não são feitos, regados.

A calamidade desprende-se da planície da casa. Persegue
a paranóia do poeta, cada vez mais pálido, cada vez mais montanha
na sua fuga para o telhado. Escalou com o fardo das dúvidas, das dívidas,
às costas; e dali avistou apenas vidros sujos 
de poeira e chuva. 
O poeta saca do pano: cai no abismo 
de uma nova limpeza. Compreende que as pessoas,
como a louça e os vidros, 
as palavras e o silêncio,
não são suas para moldar. 

Quando isto acabar, o poeta será selva. 
E eu: ou mato ou morro.