Diário da Emergência Pré-Calamidade

Prosa Henrique Manuel Bento Fialho

terça-feira, 17 de março de 2020

Saí para comprar tabaco. As lojas do bairro estão encerradas, à excepção de dois cafés, da mercearia e do restaurante de kebab. Caldas cumpre o cenário deprimente a que estamos confinados. Entrei na mercearia do bairro e abasteci-me de alho francês e pimentos, polpa de tomate, bananas. O pão estava esgotado. Cruzei-me com uma pessoa conhecida, não nos cumprimentámos. No café onde compro tabaco estavam três clientes em mesas consideravelmente afastadas umas das outras, um deles usava máscara. A empregada tinha luvas. Meti-me no carro para desenferrujar o motor, dei uma volta pelo quarteirão. Na rádio passava “O Primeiro Dia”, do Sérgio Godinho. Deve ter sido a primeira vez que não gostei de ouvir aquele refrão. Isto parece uma cidade fantasma. No E.Lecrec havia fila à entrada, no Pingo Doce também, mais curta. Estacionei e esperei pela minha vez na fila, o segurança esticava as luvas, ajeitava a máscara, borrifava o ar com gestos convictos e aparentemente eficazes. Pareceu-me realizado e com espírito de missão. Ninguém ousou faltar-lhe ao respeito, subiu alguns degraus no seu estatuto de segurança num hipermercado. Parecia um daqueles polícias que vemos em séries do tipo CSI. A senhora do pão foi muito simpática, acabei por lhe comprar também brioches e pampilhos. Os melhores pampilhos são os do meu amigo Paulo, que está em Curitiba e vai ser pai pela segunda vez. Que lhe corra tudo bem. Regressei ao carro e devolvi-me ao lar, onde agora estou sentado a escrever enquanto escuto os meus vizinhos ciganos a jogar à malha. Nunca o som daqueles ferros a baterem no chão cimentado me soou tão melódico.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Mantemos os despertadores programados na hora a que é costume levantarmo-nos, conferindo também desse modo alguma normalidade aos dias. Hoje tomei o pequeno-‑almoço na varanda, a observar os funcionários municipais que aparavam bermas e canteiros. Do lado direito do prédio há um terreno baldio que se conserva verdejante desde que para aqui viemos há vinte anos. Lembro-me de nos terem anunciado, à época, a construção de uma igreja nas imediações. Felizmente, nunca abriram os caboucos da malfadada igreja e os eucaliptos puderam crescer numa convivência anárquica com pinheiros e moitas. Algumas pessoas seguem a passo estugado com sacos de compras, vigiadas por bandos de rolas dissimuladas nos troncos das árvores, pombos aparentemente desorientados e o voo ameaçador das gaivotas. As gaivotas têm vindo a invadir paulatinamente a cidade, alguém terá que lhes tratar da saúde mais tarde ou mais cedo. Sou surpreendido por uma criatura arisca a cruzar o parque do bairro. Primeiro parece-me uma ratazana, depois suponho tratar-se de um gato, concluo por fim ser um coelho. Vejo-o esgueirar-se por entre os carros estacionados, para depois desaparecer entre as plantas do único canteiro que cumpre as funções para as quais foi concebido. É um canteiro de cactos, rosmaninho, fetos e hortênsias, homenagem involuntária à multiculturalidade dispersa pelos prédios do bairro. Quedo um bom quarto de hora a olhar para o canteiro, na esperança de que o coelho salte dentre as plantas e se escape para o terreno baldio do lado direito. Suponho que ficaria mais protegido no matagal que medra aos pés dos eucaliptos e dos pinheiros. Não salta.
Cá de cima, na varanda, parecia-me mais pequeno e indefeso do que porventura será. Talvez lá de baixo ele me tenha julgado maior e mais seguro do que na realidade sou. 

sexta-feira, 20 de março de 2020

Foi um dia do pai atípico. Telefonei ao meu pela manhã, dei por mim a reconfortá-lo com o mal dos outros. Podia ser pior, se não tivéssemos um SNS que nos acode e um país que só para cegos de espírito pode ser chamado de terceiro-mundista. Calhou-nos agora primeiro, a “nós” que nos autoproclamamos de civilizados e culturalmente superiores. Dado a memória ser curta e a vista alcançar ainda menos, esquecemo-nos de que lá por fora o ébola e a cólera são ameaças permanentes. Temo pelos sem-abrigo, sem lar onde se recolherem, pelo viciado, sem carros para arrumar que garantam a dose diária, temo por quem não consiga permanecer em casa sem ver os pés a enterrarem-se num pântano de dívidas. O que vai ser dos feirantes, da rainha das farturas e dos tipos dos carrosséis? Somos um país de gente a viver à jorna, sem pé-de-meia e solas rotas. Temo por esses para quem o desespero é estar em casa. Nós seremos o persa da vizinha, a saltar de varanda em varanda. Ou o gato malhado do prédio defronte, estirado no umbral da janela a observar os pombos que aterram no parque vazio para depenicarem migalhas. Talvez a idade me tenha incutido um optimismo desmesurado, mas de que me vale não sê-lo nestes tempos em que se torna ainda mais evidente o quão frágeis, débeis e perecíveis somos? Varridas para debaixo do tapete as guerrinhas inúteis, ridicularizadas as vaidades mesquinhas, resta-nos valer uns aos outros na esperança de que alguém nos valha. Concentro-me na mensagem que a Matilde me deixou no Facebook, na fotografia onde nos abraçamos fortemente com a Nazaré em pano de fundo. Foco-me no desenho que a Beatriz fez de nós os dois, no cuidado que teve a pintar uma moldura velha onde surgimos rejuvenescidos pelo carvão do seu traço. Tento convencer-me de que a vida é simples como um destes gestos permite apurar. Não preciso tentar muito, estou convencido.

sábado, 21 de março de 2020

O dia amanheceu brumoso, com uma chuva tímida a inspirar sensações de higiene que as páginas dos jornais se encarregam de desmentir. A incúria de alguns líderes mundiais assume contornos de barbárie. O mais provável é virem a passar incólumes por entre os pingos, sem serem julgados pela irresponsabilidade, pela negligência, pelos gestos mafiosos, pela desumanidade. Não me eximirei de os acusar, mesmo reconhecendo o efeito insignificante das minhas acusações. É uma questão de salubridade mental. No topo da inconsciência encontramos alguém cujo nome se torna difícil de pronunciar sem que fiquemos com uma sensação de imundície na garganta. Insistindo na ideia peregrina de um “vírus Chinês”, Donald ziguezagueia como mosca em torno de um monte de trampa. Tudo podemos esperar deste gangster, desde o negacionismo inicial ao aliciamento de um laboratório farmacêutico alemão, passando pela injecção de teorias conspirativas acerca de putativos ataques à economia norte-americana. Concentro-me na imagem de uma rola que, impávida e serenamente, se mantém quase oculta na ramada de um velho eucalipto. Temos muito a aprender com os animais, mais ainda com aqueles que conseguem escapar aos garrotes da domesticação. Invejo a serenidade da rola pousada no ramo, tento adoptar o mesmo sossego nos meus gestos quotidianos. Não abdico, porém, de pensar naqueles que no terreno se esforçam para garantir uma certa normalidade e nos levam a sentir vergonha da raiva com que censuramos a modorra e o tédio dos dias comuns. Uma distância enorme separa os que mais não têm senão o seu próprio umbigo daqueles que se mantêm ligados ao mundo por um cordão umbilical de partilha e de solidariedade. Não sendo os tempos propícios a clivagens, talvez de algum modo possam favorecer esta ideia: foi num tempo em que nos exigiram distância que mais próximos uns dos outros estivemos.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Há dias revimos em família Os Condenados de Shawshank, pareceu-me apropriado para estes tempos de quarentena. Depois sonhei que também eu atravessava quinhentos metros de esgoto a caminho da liberdade, dando-me conta de que o vazadouro da minha imolação dá pelo nome de redes sociais. A diferença está na ausência de cheiro, e nos anéis perdidos que vamos encontrando pelo caminho. Pergunto-me se não seria preferível uma pneumonia transmissível por contacto cibernético. Um vírus que, muito simplesmente, nos confinasse ao silêncio absoluto, um pouco como naquele filme com a Sandra Bullock de olhos vendados. Exagero, como se perceberá. A ambivalência é o rosto desta crise. No sábado, por exemplo, apeteceu-me caminhar. Assim que meti os pés na rua acorreu-me a necessidade de reabastecimento de um bem essencial. Fui directo ao supermercado e aproveitei para, além de vinho, trazer peixe e batatas e gelado para as miúdas. Estranhei com sincero assombro a organização, o método, o respeito, a observância de um povo tantas vezes acusado de laxismo. Por outro lado, lembrei-me que aguentámos cinquenta anos de quarentena no século passado. Nada de novo, portanto. Acontece que agora o respeitinho é para bem de todos. E isto faz de mim, contra minha vontade, um predador de ternura. Sempre que saio à rua apetece-me abraçar toda a gente e inundar as pessoas com beijos, até a empregada do supermercado que me vendeu peixe podre. Lá dei o meu passeio a pé, em isolamento para não contaminar ninguém com a minha ambivalência. E fui pensando em coisas parvas, como num Index Musicorum Prohibitorum, enquanto assobiava o Encosta-te a Mim do Jorge Palma. Chegado a casa, desinfectei o corpo com uma ensaboadela geral. O dia da poesia foi o mais difícil de todos. Não por ter sido da poesia, mas por causa de uma publicação que as minhas irmãs se lembraram de fazer. Dou com o meu pai e a minha mãe numa fotografia, rodeados da equipa com que há 37 anos nos governam a partir de uma loja na vetusta, mas cada vez mais desértica e abandonada, rua das montras de Rio Maior. Vendem peúgas, calças, cuecas, camisas, e tudo o que demais precisamos para cobrir um corpo. Não vendem máscaras, até ver. Na República de Platão eram três as necessidades básicas: comida, abrigo e roupa. Dois mil e quinhentos anos depois mantém-se a comida no topo da pirâmide. Farmácias e bancos encarregar-‑se-ão do resto. Perdoem-me que discorde. Necessidade mais básica do que os meus pais não tenho. Desconfio que não seja por outra que agora quedamos fechados em casa, contribuindo, paradoxalmente, para um céu menos poluído e, talvez, um futuro mais equilibrado. Apesar da tormenta dos mercados.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Pensei que talvez fosse boa ideia contemplar o Atlântico depois de tantos dias fechados em casa. Temendo desrespeitar as regras do estado de emergência, ligámos para a PSP a indagar sobre direitos no usufruto de miradouros e belvederes. O senhor agente deve ter-nos julgado tontos, rematando prontamente a conversa com uma nega tonitruante. Somos um ajuntamento. Ainda pensei fintar a classificação distribuindo o mal por freguesias, que é como quem diz dois em cada viatura, mas logo a consciência pesou tanto sobre os ombros que a cervical voltou a resmungar. A quem mais ouvi dizer que este país precisava de um Salazar em cada esquina ouço agora protestos e divirto-me com as desculpas ensaiadas para fintar os mandamentos da autoridade. Acabámos a ver passar navios da varanda cá de casa, uma família de quatro. Não posso dizer que se esteja mal, apesar de ao fim de tantos dias confinados o ajuntamento começar a parecer uma multidão. Cabe a cada um a missão de tornar o espaço amplo respeitando os tempos do outro, imprimindo ritmos ao dia que não os desvirtuem da normalidade outrora contestada. «Se tivesse que viver um filme, ao menos que fosse um musical», desabafa a Ana, antes de eu enfiar os auscultadores nos ouvidos para escutar repetidamente a Polonesa Heróica de Chopin. Arruinada a pouca reputação que me restava com parvoíces nas redes sociais, socorro-me de um pianista polaco para recuperar alguma consideração. Leio na Wikipédia, inescrutável fonte de erudição, que o tal de Chopin morreu rodeado de amigos. Eu também estou rodeado de amigos, uns espalhados ao longo das paredes de casa, outros nas estantes atoladas de livros, e ainda aqueles que sem se fazerem notar neste modo imaterial de estar vão dando conta de si rumorejando o desejo de um reencontro. Quando isto passar, dizem. E dentro de mim despontam personagens de quando e como isto era antes de ter começado a ser, o psicólogo de Arnaldo aconselhando-‑lhe vida própria, que o trabalho não podia substituir a vida, era preciso espairecer, estirar as pernas sobre a relva dos parques, desfrutar do convívio numa esplanada em tarde soalheira. E Arnaldo a olhar para a lista interminável de números no telemóvel sem encontrar um a quem achasse valer a pena ligar, hesitando, adiando, protelando para épocas de folguedo um simples “como tens passado?”. E o psicólogo a pensar na falta que lhe faz Arnaldo. Não se está mal na varanda, a espreitar a roupa dos vizinhos nos estendais e a contar gaivotas no céu. Há dias pareceu-me ter avistado um milhafre a pairar nas alturas, enquanto cá em baixo um láparo se ocultava entre as piteiras. Barrico-me na varanda como um gato a mirar melros, pintassilgos, pardais, pombos, rolas… Bem queria encontrar lesmas, Rita, mas para tanto basto eu.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Fui despertado pelo vento a roçar-se nos estores. Ontem, enquanto fumava um cigarro na varanda e contava as peças de roupa no estendal da vizinha do prédio da direita, pressenti o temporal numa nuvem negra que se avistava ao largo. Pode ser que a trovoada anuncie boas notícias. Duvido. Têm estado umas manhãs maravilhosas em Caldas da Rainha, fenómeno raríssimo na mais britânica das regiões portuguesas. Quase me apetece apostar que choverá a cântaros quando derem a clausura por concluída e nos carimbarem o direito a pôr os pés fora de casa sem prestar contas ao divino Espírito Santo. Talvez devesse apostar. Com a sorte que tenho, perderia a aposta mas ganharia uma épica libertação tingida de sol, luz e ar puro. Escrevo ao som de Ravel, não do Bolero mas da Tzigane. Grande malha. Aproveito as horas mortas para redescobrir a discografia cá de casa, ao mesmo tempo que reviro as estantes abarrotadas e dou com inúmeros livros por ler. Salto de livro em livro sem prosseguir na leitura, prática que nunca tive e de algum modo me repugna. É como deixar comida no prato, um desperdício, um insulto aos subnutridos deste mundo. A excepção foi A Mulher do Meio, de Ivone Mendes da Silva. Não sei se há boas e más conjugações astrais para lermos determinado livro, mas parece-me existir algo de misantrópico neste período da nossa história colectiva que acaba por favorecer os gestos simples e solitários, de resistência ao desencanto, com que as entradas d’A Mulher do Meio nos brindam. A Ivone escreve sem vírgulas, a escrita flui naturalmente, as gralhas e os lapsos conferem aos seus aforismos diarísticos uma sedutora autenticidade. Traçamos o perfil de quem nos escreve à medida que avançamos, sem que tal seja particularmente relevante para que desejemos continuar a avançar. Professora, divorciada, mãe, voluntariamente isolada no seu mundo doméstico temperado a chá, socialmente distante: «Trato a distância como um tesouro frágil. Protejo-‑me dos encontros e do ruído» (p. 53). A actualidade de distanciamento social politicamente infligido oferece uma ironia profética a algumas entradas. Inofensivos, estes textos omitem quanto de desconforto há do ser para consigo mesmo. Tal refreamento é uma vantagem para o leitor. À distância, “a mulher do meio” caminha, cumprimenta, observa os outros, conservando-se igualmente distante para com quem partilha a lassidão quotidiana. Está entre qualquer coisa que se revela sem se confessar e qualquer coisa que se partilha sem se expor. Quando a Matilde terminar Os Maias hei-de emprestar-lhe A Mulher do Meio. As miúdas saíram para uma caminhada breve, como ordenam os regulamentos. Ainda não haviam passado dez minutos, estavam de regresso. Uma sacristã mais papista do que o papa, devidamente ajaezada na sua farda de PSP, remeteu-as ao lar com o argumento de que não entendiam a gravidade da situação. Metidas num apartamento há três semanas, as pobres coitadas devem ter ficado traumatizadas. O conceito de passeio higiénico adquiriu todo um novo significado com o excesso de zelo da senhora agente: é uma espécie de banho de água fria, rápido e altamente desconfortável. À noite revimos O Piano, outra história dramática com final feliz para educação sentimental de reclusos em desespero. Continuo a gostar da banda sonora do Michael Nyman, mas o que mais me impressionou desta vez foi a interpretação de Holly Hunter. O que será feito dela? Depois de Crash perdi-lhe o rastro.

sábado, 4 de abril de 2020

Entre as diversas ocupações que podemos desenvolver durante a quarentena, contar grãos de
sacos de arroz é uma delas. Ler todos os volumes de Em busca do tempo perdido será outra.
Eu fico-me por tentar responder a um questionário de Proust. Eis o resultado:

Qual é a sua ideia de felicidade plena?
Um sono descansado, profundo, silencioso.

Qual é o seu maior medo?
Perder um filho.

Qual é a característica que mais detesta em si mesmo?
Insegurança.

Qual é a característica que mais detesta nos outros?
Soberba.

Que pessoa viva mais admira?
Admiro predicados, não admiro sujeitos.

Qual é a sua maior extravagância?
Banhos demorados. Muito demorados.

Qual é o seu estado de espírito mental?
Pessimismo da razão, optimismo da vontade. Respiguei-o no exemplo de vida de um indivíduo que tinha tudo para ser apenas pessimista: Antonio Gramsci.

Qual considera ser a virtude mais sobrestimada?
A coragem.

Em que ocasiões mente?
Quem conta um conto acrescenta um ponto.

O que menos gosta na sua aparência?
Penugem por todo o lado.

Que pessoa viva mais despreza?
Todas as pessoas que desprezem pessoas.

Qual a característica que mais aprecia nos homens?
A rectidão.

Qual a característica que mais aprecia em mulheres?
Esfericidade.

Que palavras ou frases usa excessivamente?
Estou farto desta merda toda.

O quê ou quem é o maior amor da sua vida?
Isso não é pergunta que se faça a um homem.

Onde e quando foi mais feliz?
Sempre que consegui sair de mim mesmo.
Dormindo profundamente, por exemplo.

Que talento mais gostaria de ter?
Funambulismo.

Se pudesse mudar uma característica em si, o que seria?
Mudaria a minha total inaptidão para ganhar dinheiro.

Qual considera ser a sua maior conquista?
Sou um falhado, pá, nunca conquistei nada na vida.

Se morresse e voltasse, que pessoa ou coisa seria?
Seria uma coisa a modos que ociosa. Ou um piano nas mãos
de Khatia Buniatishvili.

O que mais valoriza nos seus amigos?
A amizade.

Quem são os seus artistas favoritos?
Os de circo.

Quem é o seu herói da ficção?
O homem que matou Liberty Valance.

Com que figura histórica mais se identifica?
Com o Adriano da Yourcenar, que a certa altura diz: «O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmo-nos de cultivar as que ele possui.»

Quem são os seus heróis da vida real?
Todos aqueles que aprendem a dar sem necessidade de cobrar ou de receber pelo que deram.

Quais são os seus nomes favoritos?
Os das operações policiais.

Do quê é que menos gosta?
Que me tomem por parvo quando na realidade o sou sem sequer se aperceberem que tendo consciência de que o sou sei bem quando me estão a tomar por parvo.

Qual é a sua aversão de estimação?
Gente racista, machista, homofóbica.

Qual é o seu maior arrependimento?
Sofrer por antecipação.

Como gostaria de morrer?
Todo fodido, de preferência. Dizia o Al Berto, e eu concordo:
«sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir. vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável, para que a morte nada encontre de mim quando vier».

Qual é o seu lema de vida?
«A vida não é maneira de tratar um animal», dizia o Kurt Vonnegut e eu concordo.

Qual considera ser o seu maior infortúnio?
Ora porra, ter nascido. Para a minha mãe foi mais difícil.

Como gostaria de ser?
Como o homem da harmónica no duelo final.

Qual é a sua asneira favorita?
Foda-se.

Onde gostaria mais de viver?
Fora de mim.

Qual é o bem mais valioso que tem?
Como a família não tem valor, direi que é um terceiro andar junto ao bairro dos ciganos em Caldas da Rainha.

Qual considera ser a maior profundidade da miséria?
Ó Proust, que pergunta de merda é esta?

Qual é a sua ocupação favorita?
Ouvir música.

Qual é a sua característica mais assinalável?
De mim já disseram que sou besta, lombriga, água-choca, brutinho, sabujo, verme, resto de restos, caçador frustrado, ténia, etc. Dentre todas estas características, prefiro a de verme. Tem inspirado muitos e (alguns) bons poemas.

Se Deus existisse, o que gostaria que ele lhe dissesse?
Tu vai dormir, pá.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

As gaivotas andam loucas, de dia para dia ameaçam tomar conta do bairro. Detesto gaivotas, a sorte delas é ninguém as querer comer. Mas elas atacam os pombos. Não tivesse eu fobia a pássaros, importaria bandos de águias para darem cabo das gaivotas. Sou como os gatos que assomam às varandas para contemplarem as suas presas. Mesmo enclausurado, não deixo de contemplar as minhas presas. É exercício que me oferece a ilusão de uma certa liberdade. Passa-se exactamente o mesmo na vida em rede. Somos reclusos a cumprir pena por crimes de que nos julgamos injustamente condenados, mas nem por um segundo deixamos de espreitar inimigos através das assépticas janelas virtuais que nos conservam obedientes e cumpridores garantindo… distanciamento social. Infelizmente, não temos a inteligência dos gatos. Guerreamos sem garras nem dentes, apenas palavras domésticas, esbatidas, cansadas, dolentes. Que digo eu? As palavras parecem-me todas iguais por estes dias, tudo me parece repetido e entediante, monótono, fastioso, aborrecido. Sem a vida das ruas, é como se as palavras começassem a patinar na sua própria história perdendo sentido e significado. A experiência atribui-lhes um travo a selvajaria, reforça-as e reanima-as de crueldade, matiza-as de duplos e triplos e brutos sentidos. Domesticadas, redundam anódinas como gatos ronronantes em varandas mil e uma vezes varridas ao longo de um dia, outro dia, mais um dia. Como se não bastasse fecharem-nos em casa, querem-nos agora de máscara no rosto. Odeio tanto as máscaras como detesto gaivotas. Quando criança, minha mãe mascarava-me por alturas do carnaval e exigia-me que eu fosse feliz. Sofria com as gargalhadas burlescas do entrudo como uma criança sofre quando é castigada no meio da sala de aula. Gerou-se dentro de mim um nojo a máscaras e um medo de mascarados do qual nunca mais me refiz. Agora querem que me mascare, dizem que é para meu bem. Tento distrair-me desta paranóia sanitária, que mete todos a cuidarem de todos, refugiando-me entre o pó dos livros, mas não consigo ler, a concentração resvala amiúde da página para o necrológio em que o mundo se transformou. Pego na guitarra e improviso melodias ao som de trovoadas, os relâmpagos iluminam-me as noites, saio para caminhar 4000 passos, imiscuo-me no vazio das ruas da cidade vislumbrando em plena noite um indivíduo com óculos escuros a caminhar aos esses, regresso a casa ao som de “Peer Gynt” e com a preocupação antecipada de higienizar as mãos antes de voltar a tocar nas minhas filhas. Há dias aproveitámos o dia mundial do beijo para rever “Cinema Paraíso”, do Giuseppe Tornatore. Quem se recorde da sequência final perceberá o vínculo, quem a tiver olvidado poderá procurá-‑la onde tudo se encontra com a maior das facilidades. Só duas coisas não se encontram na Internet, aromas e texturas com que entreter os mais sacrificados dos sentidos. Além da sequência dos beijos, há aquela cena do filme em que Alfredo, já cego, pede a Toto que o leve a passear até ao mar. Tornatore enquadra o diálogo entre os dois amigos com imagens de âncoras espalhadas pelo cais. Não são meros adereços, são uma espécie de coro com a função dramática de nos anunciarem o afastamento de Toto das suas raízes, a necessidade de se libertar partindo, saindo, deslocando-se na direcção de um futuro que não obrigue a olhar para trás, sem nostalgia nem a melancolia arrastada de uma saudade tão nossa. Nunca desesperei tanto por momento igual.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Espero pela Ana à porta da praça improvisada no pavilhão da Expoeste. Não entro porque não consigo usar máscara, julgo preferível manter-me distante a arriscar um ataque de pânico. Vejo pessoas com máscaras no queixo. Outras, mais originais, penduram as mascarilhas nas orelhas como se fossem brincos. Suponho que algumas senhoras aproveitem para comentar as máscaras umas das outras como antes comentavam adereços e indumentária. Não entendo por que não enfiam luvas no nariz.

domingo, 26 de abril de 2020

Dei com uma senhora muito bem penteada na fila do Staples. Equilibrava-se invejavelmente sobre uns saltos que eu desaconselharia a qualquer ser humano, até porque sofro de vertigens. Fiquei a pensar onde teria arranjado o cabelo. Atrás dela estava outra senhora, não tão produzida, mas com uma máscara que me deixou cismático. Quando era miúdo tinha dificuldade com os atacadores. Já mais crescido, meu pai perdeu horas a tentar educar-me em nós de gravatas. Em vão as perdeu. Imagino que deva ser necessária muita destreza para usar uma máscara com aquele aparato, dois laços apertados em triplo nó atrás da cabeça. Eu continuo em pânico com as máscaras. Já experimentei uma viseira e senti-me como uma personagem do filme “Massacre no Texas”. Se me vir obrigado a andar com uma coisa destas, acho que vou prolongar a quarenta para lá da quarentena. Só sairei de casa quando houver vacina. E me medicarem contra a agarofobia.

domingo, 3 de maio de 2020

O mal é dos chineses, ninguém os manda comer morcegos.
O mal é dos americanos, não tinham nada que invadir o Iraque.
O mal é da União Europeia, que deixam entrar toda a escumalha.
O mal é dos russos, que são russos.
O mal é da Internet e das notícias falsas e das redes sociais, que só servem para manipular os homens.
O mal é do ser humano, especialmente dos russos, que só sabe destruir o planeta.
O mal é dos árabes, que são uns fanáticos.
O mal é dos ciganos, que não fazem a ponta de um corno (excepto quando é para fazer mal).
O mal é dos pretos, que não querem trabalhar.
O mal é dos judeus, que têm a mania que são bons.
O mal é da Igreja, que anda a prometer paraísos no céu e se alia ao diabo na terra.
O mal é dos índios, que não querem ser civilizados.
O mal é do socialismo, que não quer trabalhar (tal como os pretos).
O mal é dos fascistas, que são fascistas.
O mal é dos liberais, que com tanta liberdade acabam por abrir caminho para os fascistas.
O mal é do 5G, que eu ainda não percebi bem o que é mas de certeza que não é coisa boa.
O mal é dos ambientalistas, sobretudo daquela gaiata desaparecida em combate a quem roubaram o futuro.
O mal é da ganância dos homens, sobretudo se forem chineses.
O mal é dos políticos, que são todos uma cambada de corruptos (quer factura?).
O mal é dos abstencionistas, que não querem saber disto para nada e só sabem queixar-se.
O mal é da indústria farmacêutica, que anda a contaminar as pessoas para que fiquem doentes e tenham de comprar medicamentos.
O mal é da indústria militar, que mete toda a gente em guerra (especialmente os pretos e os árabes).
O mal é dos jornalistas, que são uns vendidos.
O mal é do capitalismo, que explora os pobres para engordar os ricos.
O mal é dos bancos, que só sabem roubar.
O mal é dos ladrões, que estão todos nos bancos.
O mal é do álcool, que deixa as pessoas assim.
O mal é da droga, que deixa as pessoas assado.
O mal é da prostituição, que dá cabo das famílias.
O mal é dos padres, cambada de pedófilos.
O mal é dos paneleiros, que o cu é deles.
O mal é dos filósofos, que andam a desviar a juventude há 2500 anos (pelo menos).
O mal é dos poetas, que são piores que ciganos.
O mal é dos doutores e engenheiros, que a educação já não é o que era.
O mal é dos professores, que não sabem ensinar.
O mal é da poluição atmosférica, é dos aviões que andam no ar a pulverizar o planeta, é das gasolineiras e da companhia do gás e da EDP e das telecomunicações e dos carteiros…
Eu? Eu não faço mal a ninguém. Nem a uma mosca.
Esqueci-me de que o mal também é das moscas. Ah pois é.