A trela extensível

Conto José Carlos S. de Almeida

A Dona Belarmina, viúva, moradora da Praça da Alegria, em Lisboa, adquiriu um cãozinho cinco anos após o falecimento do seu saudoso companheiro. Estiveram casados mais de quarenta anos e, como não tiveram filhos, a súbita morte do marido fez abater sobre a Dona Belarmina uma onda enorme de solidão que estava prestes a afogá-la. Recordou-se, então, do avisado conselho do seu Paulino: «Se eu partir primeiro, compra um cão para te fazer companhia.» Belarmina não suspeitava que o conselho do marido apenas pretendia evitar que o seu lugar pudesse ser ocupado por outro; imaginava que um cão bastaria para afugentar qualquer pretendente que, face à viuvez de Belarmina, se visse acirrado para a conquista ou reconquista, nunca se sabia.

Porém, Dona Belarmina apenas queria afastar a solidão. Além disso, também se apercebera que muitas das suas amigas tinham animais de companhia. Foi neste contexto que se decidiu pelo Piruças, um irrequietd caniche, cujas traquinices muito divertiram a sua dona nos primeiros tempos. De tal maneira ria com ele e por causa dele que chegou a temer que se estivesse a exceder para lá do que era publicamente recomendável, tendo em conta a sua  condição de recém viúva.

 O Piruças, como qualquer cão traquinas, gostava muito de correr. Quando se apanhava no jardim, à tarde, o Piruças divertia-se correndo atrás dos pombos, dos gatos e, obviamente, atrás de outros cães. Dona Belarmina tentava em vão acompanhar essas correrias. E, ofegante, acabava a chamá-lo o mais alto que podia, tentando fazê-lo regressar até junto de si. Até porque o Piruças se distraía muito facilmente e não reparava nos carros que circulavam junto do parque. Por várias vezes, Dona Belarmina ficou sem pinga de sangue ao assistir a travagens súbitas e violentas dos automóveis, evitando atingir o Piruças

A chiadeira dos pneus no asfalto era como que um uivo angustiante que Dona Belarmina decidiu não mais ouvir. Foi por isso que resolveu adquirir uma coleira e uma trela eficazes, que evitassem essas situações. Mas, como também era incapaz de impedir o seu Piruças de fazer o que mais gostava, que era correr, teve que optar, aconselhada pelas suas amigas, por uma trela extensível, o último grito neste tipo de equipamentos. E fez questão de pedir na loja da especialidade, a maior trela extensível que tivesse. Mesmo que fosse para um pequeno cão como o Piruças. Belarmina, levando consigo, ao colo, o Piruças, explicou de forma categórica o que pretendia, usando um tom de firmeza aristocrática com pergaminhos que abafou os risinhos dos empregados da loja que, entretanto, tinham parado para escutar melhor aquela estranha cliente. 

«Eu quero o que houver de melhor em matéria de trelas extensíveis. O melhor, quer dizer, o mais seguro e com mais alcance.»

O próprio dono do estabelecimento, «Aires – acessórios para animais de companhia e outros», fizera questão de a atender. Fixou as mãos abertas em cima do balcão e apoiou o corpo nos braços, um pouco inclinado sobre a cliente, mas acabou por recuar ligeiramente face àquele pedido. Quer dizer, face àquela ordem. Depois dirigiu-se ao computador.

«Acho que temos o que pretende. Acaba de sair. Mas tem de vir de fora… Da China!» E continuou a teclar rapidamente, meio oculto pelo monitor da máquina. «Su-zen La… trelas extensíveis infinitas… Su-zen La, Xangai.» Parecia um feiticeiro, a debitar uma fórmula mágica, num dialecto desconhecido. Depois soltou uma gargalhada. «Infinita? Uma trela infinita?… Esta publicidade exagerada…» Mas Dona Belarmina não se deixara impressionar.

«Desde que corresponda àquilo que eu quero, até pode vir da… Rússia. Quero a melhor trela extensível que existir no mercado! Pode ser infinita, como eles dizem…»

Os ajudantes aproximaram-se por detrás do patrão e foram espreitando, curiosos, os resultados da busca na internet por trelas extensíveis, pelo melhor que houvesse em matéria de trelas extensíveis.

Isto foi o que a Dona Belarmina tinha como explicação aceitável, porque era incapaz de confessar que não tinha conseguido resistir à trela extensível que vira ser usada por uma sua amiga, a Dona Efigénia. A Dona Belarmina conhecia a Dona Efigénia desde os bancos da escola. E sobre as relações entre as duas não se pode dizer que fossem as melhores. Chegaram até a disputar o mesmo rapaz, com vantagem para a Dona Efigénia que o conseguiu conquistar e, por fim, casar. Embora aqui se deva dizer que a Dona Efigénia casou com ele, por temer que se o largasse a Belarmina o pudesse agarrar. Só descansou um pouco quando Belarmina casou com Paulino. Porém, Efigénia achava que a Belarmina, a invejosa Belarmina, nunca se esquecera dessa disputa. Havia, por isso, uma guerra antiga, um clima de guerra surda entre as duas. E, quando a Efigénia apareceu no jardim com uma trela extensível, Belarmina nunca mais sossegou até descobrir onde se vendiam e acabar por comprar uma. Claro que tinha de ser a melhor. E a maior que havia. E a mais cara! Desconhecendo que uma encomenda destas, vinda da República Popular da China, poderia ser fatal. Como foi. Como veremos.

A trela extensível chegou passadas duas semanas, duas angustiantes semanas. Nesse dia, a seguir ao almoço, Dona Belarmina anunciou às amigas, fixando especialmente a Dona Efigénia, que ia ao fim da tarde à loja, ao estabelecimento «Aires – acessórios para animais de companhia e outros», buscar a trela extensível para o Piruças. «A trela extensível que veio da China?», perguntou uma das senhoras. Dona Belarmina confirmou, como se outra trela vinda de outro sítio do mundo fosse inapropriada para o seu cãozinho. «Para o meu Piruças, só mesmo produtos da China! Da China, mas mesmo de Xangai, não de uma loja dos trezentos!» As amigas concordaram, acenando com a cabeça. A Dona Efigénia fingiu que não tinha ouvido. A Dona Belarmina agarrou-lhe o braço: «Já sabe?… Vou buscar a trela extensível do Piruças! A trela chinesa!» A Dona Efigénia resmungou que já tinha ouvido, que ouvia bem, muito bem, que não era surda.

Ora Piruças nunca tinha sentido no seu pescoço uma coleira e manifestou com rispidez a sua estranheza, nos primeiros dias. Depois, habituou-se.

Dona Belarmina fazia questão de lhe repetir, para que todos ouvissem:

«Bem, Piruças, é uma coleira e uma trela Su-zen La, feitas em Xangai! Nada de imitações, que gastei mais de 400 euros!»

E, segurando no Piruças, olhava à sua volta, observando o efeito das suas palavras. As amigas já as conheciam de cor e algumas já nem podiam ouvir os gritinhos esganiçados de Dona Belarmina, chamando o Piruças e elogiando as qualidades técnicas da trela extensível made in Xangai, adquirida na loja do senhor Aires.

Durante muitas tardes, o Piruças divertiu-se, apesar daquela situação estranha à volta do seu pescocito, mais do que era costume, utilizando a nova trela extensível. Mercê da sua extensibilidade enorme, o Piruças podia deslocar-se cada vez mais longe, saindo do campo de visão da sua dona. Esta, contudo, estava descansada: no folheto de apresentação das coleiras e trelas Su-zen La, falava-se duma capacidade quase infinita, testada nos opositores do regime, nomeadamente no tempo do bando dos quatro. 

«Bando dos quatro?», questionou a Dona Zeca, outra das amigas.

«Ora, deve ser uma matilha!… Ou uma raça nova… Uma raça chinesa… Chinesa da China!», esclareceu a Dona Belarmina. E todas concordaram, acenando com a cabeça.

Todas as instruções estavam escritas em inglês, traduzindo os caracteres chineses, em mandarim, para ser mais preciso. Dona Belarmina compreendia muito mal o inglês e tudo aquilo lhe parecia muito estranho. Achava que aquilo da capacidade infinita era mera publicidade; já quanto ao facto de as trelas terem sido testadas nos opositores do regime maoísta, isso era-lhe completamente incompreensível. Mas bastava-lhe olhar para a aparente alegria do seu Piruças brincando para se desligar dos problemas de tradução do folheto de instruções da coleira extensível. Afinal, era esta a causa da mais recente boa disposição do seu fiel companheiro. Não era isso o mais importante? O regime maoísta só podia ser uma coisa boa.

Porém, um dia, o mais inesperado acabou por acontecer. Dona Belarmina, como era costume, tinha jantado frugalmente. À noite bastava-lhe um prato de sopa, que, por vezes, partilhava com o Piruças. Nesse dia, Piruças recusou o resto da sopa da dona. E, quando Dona Belarmina se instalou na salinha, diante da telenovela, o Piruças desatou a correr, primeiro às voltas na sala, depois percorrendo todas as divisões da sala. Dona Belarmina estranhou aquele comportamento e chegou a pensar que o seu cãozinho tinha comido alguma coisa que lhe tivesse feito mal. Só que o Piruças parecia cada vez mais desvairado, na sua corrida desenfreada. Em vão a dona o chamava. Piruças parecia desligado de tudo, apenas preocupado em correr cada vez mais depressa. Era como se não estivesse a correr por vontade própria, mas estivesse a ser puxado de forma violenta. Belarmina estava a ficar assustada e, apesar de estar agarrada à trela, segurando-a com toda a força que possuía, sentia que o seu cão ia sair de casa disparado, impelido por uma força estranha. Uma força centrífuga, o pior que pode haver, imaginava. 

Até que, continuando a trela a desenrolar-se furiosamente, Dona Belarmina deixou de ver e ouvir o seu Piruças. Sabia, por ter lido nas instruções, que depois de muitos metros a trela, normalmente, estacava e já não se estendia mais. Contudo, sentia que algo de estranho se estava a passar. De facto, naquela noite, a trela não parou de se desenrolar. Magicamente, parecia uma trela infinita, como anunciava a publicidade. E o cão nunca mais voltava. A noite avançava e o Piruças não regressava. A Dona Belarmina bem o procurou e chamou, mas nada. Até que resolveu suspender as buscas e voltou, mergulhada numa profunda tristeza, para o seu quarto, com a pega da trela na mão. Ainda olhou para o pratinho onde o Piruças comia e os seus olhos não conseguiram reprimir as primeiras lágrimas dessa noite. Deitou-se e custou-lhe adormecer, a pensar por onde é que o seu cão andaria. Se estaria bem, se teria um sítio para dormir, se teria comido qualquer coisa. Na sua mesinha de cabeceira poisou, ao lado do copo com a placa, a pega da trela extensível. Tinha a certeza de que acordaria se a trela se mexesse.

                  No outro dia, mal acordou, caminhou para a cozinha, na esperança de que o seu cão tivesse voltado. Tinha-lhe deixado a porta aberta do quarto, com essa intenção. Chamou o Piruças, mas nada. Mas ficou surpresa quando viu que o comedouro estava vazio. O Piruças tinha lá estado durante a noite!

                  Nos dias que se seguiram, custou-lhe muito sair à rua e enfrentar as perguntas das amigas que queriam saber do Piruças. Não era capaz de lhes contar a verdade, pelo que lhes foi dizendo que o pobrezinho estava doente, com uma arreliadora inflamação gástrica, doença que conhecia em pormenor por ter estado na origem do problema de saúde, mais grave, que lhe levou o marido. Efigénia pareceu desconfiar da explicação, mas Belarmina já não reparava nos olhares frios e acusadores da outra. A ausência do Piruças era mais que suficiente para lhe ocupar a alma, afogar-lhe qualquer outro sentimento.

                  Durante várias noites, o comedouro foi sendo enchido e no outro dia estava vazio. Mas era em vão que a Dona Belarmina tentava surpreender o seu cão, ou porque nunca chegava a vê-lo, ou porque adormecia antes da sua aparição, ou porque acontecia ele aparecer quando ela tinha que ir à casa de banho. Na noite em que conseguiu, finalmente, ficar completamente desperta, muito à força de um café duplo que lhe deixou o coração a palpitar tanto que esteve prestes a chamar por socorro, o Piruças não apareceu. E assim também aconteceu na noite seguinte, até que a Dona Belarmina desistiu de ficar acordada, emboscada numa cadeira ao lado do frigorífico, não fosse o Piruças deixar de se alimentar, devido à sua presença entrincheirada.

                  Essa mudança de estratégia não veio alterar nada. O Piruças parecia que já não conhecia o caminho de casa, o que não deixava de ser estranho, pois bastava seguir a trela. A pega desta continuava poisada junto ao comedouro, como se fossem peças do passado, dum passado agora dolorosamente feliz.

Por fim, um dia, a Dona Belarmina, morta de saudades do seu Piruças, resolveu puxar com mais determinação a trela extensível. Estava disposta a não parar enquanto não aparecesse o seu Piruças. Esteve assim durante horas, como se fosse um pescador a puxar a sua cana de pesca, a enrolar a linha. Esperava ser compensada por abundante pescaria. Quando pensava que ia aparecer o seu Piruças, um pouco mais magro por ter deixado de comer todos os petiscos que a Dona Belarmina lhe arranjava e lhe deixava à noite, saltou-lhe na cozinha um canzarrão enorme que ladrou furioso. Vendo que quase nada estava no comedouro, abriu a boca e, sem mastigar, engoliu a Dona Belarmina que, num mergulho perfeito de cabeça, desapareceu por completo no amplo buraco negro que era agora a bocarra do seu renovado Piruças.

(2016-2020)