A Varanda

Conto Carlos Querido

Três assoalhadas sombrias e um sítio onde se avista o sol no ocaso, numa nesga de céu nem sempre azul. Bendita varanda. Teresa sabe que enlouqueceria ainda mais sem este refúgio de dois metros quadrados onde fuma cigarros furtivos quando o tecto e as paredes da casa se desmoronam no silêncio irrespirável que se segue às discussões. Entre as palavras azedas trocadas com o marido não há uma única que se extinga depois de pronunciada. Antes se prolongam todas em ecos inaudíveis, à espera de uma oportunidade para regressarem dos recantos obscuros da memória onde persistem raivosamente. E quando quebram a falsa trégua, voltam mais ácidas, regurgitadas com sucos gástricos e pedaços de fel. Testemunhas silenciosas, as paredes já não suportam nas suas entranhas mais gritos, confissões e segredos, e por isso o ar torna-se escasso, saturado, insalubre, quando as palavras regressam carregadas de injúrias, ávidas de aniquilamento. Nesses momentos restam dois metros quadrados para inspirar profundamente a aragem da rua deserta. Bendita varanda.

Tempos houve em que as coisas não correram mal. No aconchego das rotinas os dias sucediam-se mais ou menos iguais, sem dramas nem sobressaltos, até que os miúdos saíram para Erasmus e a sua ausência encheu a casa de silêncios. O vazio que deixaram alastrou como uma mancha monótona, densa, pegajosa, mal disfarçada pela janela do Skype onde deslizavam imagens de Berlim e de Edimburgo. No princípio chegavam em voos low cost, para férias apressadas, sempre com urgência de regressar às suas vidas. Depois foram espaçando, as imagens do Skype e os voos low cost.

Não foi por mero acaso que Teresa descobriu. Esquecido sobre a mesa, o telemóvel do marido emite um suave pio a denunciar uma mensagem. Basta-lhe esgravatar um pouco, com o dedo trémulo e ansioso, para trazer à superfície perfis do Tinder, encontros marcados e fotografias em poses obscenas. Ele acaba de entrar na sala. Olham-se à distância. Em silêncio medem agravos, ressentimentos e consequências. No mesmo silêncio ela deixa cair o telemóvel sobre a mesa. O desalento inibe-lhe gestos e palavras. Não quer falar disso. Uma súbita fadiga fá-la abater-se sobre o sofá. O silêncio persiste e ambos sabem que pode ser cortante como o vidro que se estilhaça quando se rasga com palavras afiadas. Quero o divórcio, balbucia irrevogável. Há estilhaços por todos os lados. Ele caminha cautelosamente sobre os fragmentos cortantes. Não é bem o que pensas, vamos conversar. De mãos erguidas ela esbraceja como se esconjurasse uma ameaça. Não quero discutir. Quero o divórcio. Tudo bem, responde ele apaziguador, alheado, quase indiferente. Sairei de casa logo que termine o estado de emergência.

O mundo está em reclusão. Anda pelas ruas e por todos os lugares um parasita intracelular de ínfima dimensão, inerte, insidioso, sem vida e sem outro desígnio para além de se alojar em células humanas, para se replicar, para se multiplicar, para cumprir o imperativo da sua estranha existência. Teresa é uma das prisioneiras. O que mais lhe custa é partilhar a cela com alguém que deseja bem longe, da vista e do coração. Separam camas, refeições, horários, mas aquela presença pesada, opressiva, enche a casa, retira-lhe espaço, suga a luz e o oxigénio, até ao sufoco. Há apenas um corredor, entre os quartos e a cozinha, um espaço estreito sempre obstruído por ele, de forma ostensiva, talvez propositada. Quando se cruzam, ela baixa os olhos e espera que ele passe. Ele desliza numa lentidão exasperante e sobranceira. Há uma única casa de banho, onde ele passa horas a ler o jornal. Ela bate à porta, protesta pelo mau cheiro, pelo tampo da sanita encardido com o jacto descuidado, pouco certeiro. A repulsa tira-lhe o apetite. Esses cheiros não são normais. Quando fores ao supermercado compra ambientador, e quando te fores embora vai ao médico. Cheiras a podre. Alheado, ele olha-a como se não a visse, ignorando ostensivamente a injúria, num silêncio mudo, persistente, ofensivo. Ela não desiste. Tudo menos o silêncio magoado, como se fosse ele a vítima. E atira-lhe à cara a traição dele, agora que ela está fragilizada pela doença e pela saída dos miúdos. Diagnosticado vai para um ano, o cancro da mama deixou-a devastada e ele, ao invés de a apoiar, refugia-se nas galdérias da internet. Finalmente, ele acede a gritar-lhe. Diz-lhe que ela está cheia de razão, mas que o deixe em paz. Ferida pela arrogância da confissão sem a humilhação do arrependimento, ela sente que perdeu esta batalha e todas as que se seguirem.

Insone, Teresa vagueia pela casa. Quando se dirige à varanda depara-se com o vulto maciço do marido, o rosto sombrio iluminado pelo ecrã do telemóvel. Esse lugar é meu. Que eu saiba, a casa pertence aos dois. Despojada daquele recanto, nada mais lhe resta. Estranha força a do desespero. Músculos retesados, mãos em garra, um grito de guerra rasga a noite. Lutam junto à balaustrada da varanda no oitavo andar. Espera-os lá em baixo uma rua deserta.