Conheço ventos

Conto Rui Vieira

Aprendi a conhecer ventos.

As árvores da janela da minha sala trocam segredos entre as folhas, murmulham palavras santo-e-senha que não decifro

doze caracteres, uma letra maiúscula, uma minúscula, três algarismos
para conhecerem os códigos do vento,

frases soltas como suspiros

e talvez falem de mim, pedem-lhe que me indague a alma para perceberem porquê, afinal o estranho sou eu, quase não me viam e agora eu no rectângulo que os ramos das copas dominam, riem-se do meu pijama às riscas, da barba que deixei crescer e dos chinelos que começam a deformar num dos calcanhares,

dois meses

do quarto para a sala, da sala para o quarto, arrasto-me no acanhado apartamento de sempre, de repente mais pequeno do que imaginava, a esquina da cristaleira que cresce quando saio da cozinha para me confinar na mesa redonda encostada à parede, o portátil que trouxe do escritório que a Informática distribuiu e o relatório que preencho todos os dias à mesma hora a olhar o vazio do ecrã, o telemóvel sempre ligado, e as gaivotas que já não fogem do parapeito bicam o vidro em desafio, levanto os olhos e permanecem descontraídas a alisar as penas, mesmo quando o computador ou a rede falham e o chefe quase aos gritos no outro lado do telefone,

Eduardo, não está no seu posto

eu, quarenta anos no meu posto, de aqui a oito meses uma salva de prata com um rendilhado de letras que não me interessa e finjo ler, igual à dos vinte cinco, à dos trinta e cinco, e eu uma luzinha que se apaga algures num sistema que ignoro, se fosse vento podia andar pela rua, cumprimentava as pessoas que não conheço com um ligeiro despentear, para sentirem uma carícia que as fizesse sorrir, um passar de dedos a compor a melena, espreitava o escritório vazio onde apenas o chefe com ar importante perdido num site de notícias cor-de-rosa, foge de manhã para não ouvir os filhos durante todo o dia e poder continuar a sentir-se importante em casa, não a Direcção a depender dele, o mundo, a gravata no espelho só para ele, ninguém no escritório que

o café, senhor doutor

o ar cansado de tédio ao voltar no final da tarde a queixar-se do trabalho imaginário que teve,

lá estão as folhas, consigo ouvi-las

não entendem que ligue a televisão logo pela manhã, sem som, apenas para estar por ali, fazem-me companhia os reflexos das cores, fartei-me de ouvir charlatões especialistas em tudo,

não sabem falar de ventos.

As árvores da janela da minha sala escondem ninhos de melro, entrelaçam ramos com as agulhas dos bicos, os machos têm as orlas dos olhos amarelas, umas armações redondinhas, um fato negro brilhante sempre bem passado a ferro, um ar quase intelectual como os cucos que vejo aparecer para chocarem os ovos na televisão, num sacolejar de asas a barafustarem contra tudo e todos, vivem zangados com o universo que não entendem não lhes pertencer, com o protagonismo que sabem não possuir, exibem a penugem de sempre enquanto incham o papo para que ninguém se aperceba que os ovos são falsos; nas notícias dizem que os animais desceram às cidades, mostram imagens de ovelhas nas cidades, de pavões que voam pelos jardins, agora passam números, estatísticas do dia, como o chefe no escritório a inventar gráficos, acentua a pronúncia para pedir

report

o patrão a procurar-me nos olhos certo da tradução, a chamar-me ao gabinete num final de dia,

filho de um meu amigo, Eduardo, devo fav

sem necessidade sequer de se desculpar, e para quê?, como hoje que não me apetece almoçar,

a sopa que ainda me resta no frigorifico para logo

acabei as remessas e as guias que precisava de enviar, conferi os créditos documentários; o meu vizinho do lado corre na sala, contígua à minha, sinto a parede a tremer, sai para trabalhar ao início da tarde, chega durante a noite, ouço-o a falar com a mulher depois do banho, há dias que a sacudir a cama como as rolas quando o sol aparece por detrás das folhas, empoleiradas nos ramos, estendem as penas num agitar de asas, esticam o colar do pescoço enquanto gemem,

cucurru, cucurru

se tivesse a ti talvez não precisasse de perscrutar o vento, responder às dúvidas do passado que vejo no espelho, preocupava-me com a tua saúde, levava-te à rua pela mão, não para não fugires com um primo para França, para não escorregares nas folhas que se libertam com uma aragem mais forte, procuram um leito para se transformarem em vida, voam livres como tu que não acreditavas nas pessoas do país, no patrão que devia favores, em mim com medo de arriscar, de te beijar na rua ou à saída do teu Departamento para que ninguém soubesse que alguém da Contabilidade de aqui a oito meses, quarenta anos, sozinho a uma mesa sob uma janela a escutar o vento, uma salva de prata com um rendilhado de letras que não me interessa, que fingirei ler se os gráficos do doutor não

Eduardo, nunca pensou reformar-se

e eu preso nesta casa, numa liberdade que nunca tive, o cabelo desgrenhado, a arrastar os chinelos de sempre que teimam em fugir num dos calcanhares, à espera que alguém diga que posso sair, cumprimentar uma cara conhecida dizer-lhe que me interessam os ventos de onde possas estar, que continuo a guardar a tua fotografia na minha carteira e talvez um dia a deixe voar com as folhas, com as pétalas de uma flor, ou deixá-la marear à noite na espuma das nuvens das ondas prata que a lua forma nas copas.

As árvores da janela da minha sala dançam ao vento para mim, livres, num longo vestido de lantejoulas verdes,

lá estão as folhas, consigo ouvi-las

estendem os braços das brisas para te elevarem no ar, rodopiarem em passos de valsa e em vénias para vidas como a minha, sussurram o teu nome ao vento num chilrear poético, libertam o perfume da tua pele, chamam por mim, o mail que agora recebi diz que temos um vírus no sistema, mudar a palavra santo-e-senha de forma a

doze caracteres, uma letra maiúscula, uma minúscula, três algarismos
eu encarnar o vento que te beija os lábios.