Contracurva

Conto Sara Anahory

Uma rapariga toca à campainha de um prédio comum, igual à maioria dos prédios nas partes antigas das cidades, bonito em tempos, agora a envelhecer sem cuidados. É um prédio de 3 andares, magro, quase se mede ao palmo, uma varanda de ferro por piso, a porta estreita e sem graça de um alumínio metido à força que nunca ali pertenceu, a campainha com alguns buracos no lugar de botões. A porta abre-se e ela entra. Lá dentro, dentadas sem-cerimónia nos degraus de madeira, paredes sujas disfarçadas pela falta de luz, melhor assim, e um corrimão descascado e peganhento. 

“Sim?”, uma voz vinda de cima. Ela olha e no patamar do primeiro andar um homem, jovem, jovem-homem, vinte e tais talvez, alto, moreno, camisa aberta, cerveja e cigarro na mão, calças largas, olha para baixo e sorri aberto ao vê-la.

“Desculpe, é engano, não é para aí, devo ter tocado na campainha errada”, a voz temerosa, imediatamente incerta ao ver o olhar malicioso dele, a postura confiante, orgulhoso da sua generosidade, ocupando sem pejo todo o espaço. A rapariga leva um ramo de flores numa das mãos, é bonita, alta nos seus 19 anos, cabelos bem lavados, ondulados e compridos, uma saia acima do joelho com as pernas agora a tremer e as pontas dos dedos da outra mão, com nojo, apoiadas leve no corrimão.

A visita destinava-se a dois andares acima, onde vivia o seu namorado, nesse momento a estudar para os exames finais do curso de engenharia, provavelmente sentado à secretária, concentrado nos seus papéis e cálculos sem saber da sua chegada.

“Vou para o terceiro andar”, atira ela, forjando firmeza na voz e à espera que ele voltasse para de onde saíra, como é que iria ela passar com ele ali?

“De certeza? Tens a certeza que não foi para aqui que tocaste?”, visivelmente satisfeito com a aflição mal disfarçada dela, ele cada vez mais à vontade, se é que era possível, parecia que o seu corpo ia crescendo no minúsculo patamar. 

A ela batia-lhe o coração sem saber como iria chegar lá acima. Pensou em sair do prédio e voltar a tocar à campainha desta vez acertando, mas por alguma razão não o fez. Não queria evidenciar nenhum tipo de constrangimento ou perturbação, queria fingir que não era nada de mais aquele corpo ali no meio das escadas, nada de mais aquela insinuação, nada de mais a ameaça disfarçada de convite. Na sua mente ele agarrá-la-ia sem rodeios assim que o tentasse contornar e à força seria arrastada para o terror do que deveria ser a sua casa, a ver pelo morador. Nada de mais a respiração acelerada e o suor na nuca.

Reunindo coragem e traquejo inventado – “sim, de certeza, obrigada” – inicia a subida firmando os pés no chão e a mão no ramo. Alcança o último degrau do primeiro lance de escadas com suspeita ligeireza, engole em seco e segue, mais dez degraus, a última chance para afinar a indiferença ensaiada em segredo. Chegando ao patamar, o olhar displicentemente colocado num qualquer ponto de fuga ignorando a transparente e irrelevante presença, essa sim tranquila, quieta, expirando impassível uma grande passa, contorna num passo doble o corpo colossal e na última esquina, já quase transposto o perigo, o seu cotovelo roça leve, muito subtil, o tronco dele, na zona lateral junto às costelas. Um choque eléctrico trespassa-a fulminante espinha abaixo, barriga acima, o pé trava suspenso no ar antes de tocar o próximo degrau e, num impulso fugidio, roda a cabeça de soslaio por cima do ombro, a boca entreaberta e… cai o olhar turvo no vazio… surpreso, atordoado, ao encontrá-lo já de costas a entrar em casa fechando a porta sem barulho. A estridência é só dela. Restam-lhe agora uns quantos lances para se recompor e baixar o volume.

Diante da porta do 3.º andar, um fio de suor a escorrer-lhe da testa, ramo e cabelo agora desalinhados, toca à campainha, cada passo dele em direção à porta a desacelerar-lhe o ritmo do coração, mas o sangue ainda a ferver nas mãos em chama. O Paulo abre a porta, magro, franzino, as olheiras emolduradas pelos aros finos e prateados, o casaco de lã castanho a aconchegar o pólo engomado e um sorriso pálido e desnutrido, “olá, entra, estou só a terminar, dá-me uns minutos apenas”, dirigindo-se num passo lasso para a sua secretária junto à janela.De cabeça pendente ela senta-se no sofá baixo encostado à parede esconsa, ambos desajustados ao tamanho do seu corpo e do seu alvoroço. Dentro e fora gritantemente discordantes, sem no entanto disso tomar nota ou nada saber. Pousado ao lado o ramo murcho e nos joelhos as mãos quebradas, a desvanecer-se sem pensar o não acontecido.