Omnibus

Conto Sara Anahory

Sentada à janela no banco da camioneta a caminho de um destino por conhecer experimentou pela primeira vez na vida a sensação de estar a ir para a terra. Era sempre com um bocadinho de inveja – era perita em inveja pelo tanto que a praticara em criança – que ouvia as pessoas dizerem na altura da Páscoa, do Natal e deleite máximo no Verão com os seus três longos meses de férias, “vou para a terra!”. Imaginava ser uma coisa maravilhosa saber de onde se vem e mais ainda poder lá voltar; fazer uma mala e seguir caminho com última paragem na própria fonte, como que voltar à casa da partida. Voltavam de lá, senão reassegurados de quem são, pelo menos de onde vêm, o que talvez dê no mesmo, e traziam ainda, junto com as cores nas faces e os cheiros no corpo, as cestas penduradas nos braços de onde saíam, como coelhos dos chapéus de mágicos, chouriços, couves, ovos, pães embrulhados em envelopes de pano e bolos amarelos por dentro com sabor a erva doce.

E agora ali estava ela, o leve ronronar do motor por baixo, o embalo dos pequenos sobressaltos dos pneus na terra batida e pelo vidro a estrearem-se aos olhos lugares nus que nunca visitou: montanhas-lagos-planícies competindo em beleza, num país diferente, um outro continente, o mais longe que alguma vez estivera de casa e, ainda assim, a tão desejada e inédita sensação de estar a ir para a terra.  

Foi algo que se apoderou de si sem dar conta, rasgos promissores a ficarem para trás, captados em segundos que teriam que ser suficientes para mais tarde aceder ao momento já passado, vivido com uma rapidez contrária à sua importância, marcado para o resto da vida como um dedo no barro molhado. Tomou-a um sentimento ou um modo de sentir, tudo por dentro demorando-se vivo, ao mesmo tempo um vago entorpecer, um fino véu de água estendido pelo peito, braços, barriga… ou talvez azeite morno, derramado lento ocupando cada espaço vazio.

Esquecida do destino e até da viagem, existia naquele momento. Incompartilhável, apesar de partilhado com outras cabeças balouçantes na camioneta, umas também em silêncio olhando fora, outras em animado tagarelo autoexcluídas de tamanha grandiosidade, como é possível, “não obrigada já comi” afastando o prato com a mão, inconscientes da oportunidade diante dos olhos, benesse rara no movimento automático da vida indiferente à nossa permissão, “existo parte daquilo e aquilo de mim, duas peças inseparáveis encaixando-se na perfeição”. Até o riso, o palreio, a subtração alheada dos outros virados de pé para o banco de trás, ignorantes ao que se passa naquele momento, em todos os momentos, mas agora com a chance escarrapachada diante dos olhos, até esses, até isso fazendo parte. “Nada quebra, nada perturba, posso pousar, posso pousar e sentir-me, nada mais posso fazer, nada mais senão isso, ao menos isso”.

Expectante, aberta a cada surpresa ao virar de um monte, de uma escarpa, de um mar de areia cor de laranja do comprimento de uma só inspiração-expiração, nada mais se faz necessário e mesmo assim, como se não bastasse já para saber-se existente, de repente, um lago que não pode ser deste mundo a mostrar-se indiferente ao espanto prepotente dos mirones, “não, não és tu que me fazes, eu já cá estava e estarei bem após o teu enterro e o da tua memória, mas para já ofereço-me-te, aqui estou”, beleza sem fim a revelar-se a cada curva. Foram 80 quilómetros disto, a provar que o destino não supera o caminho e que o como suplanta o o quê. Mas podiam bem ter sido 80 dias, cativa voluntária da fusão absoluta, a verter-se continuamente no fora e o fora continuamente no dentro até desaparecidas todas as fronteiras.