Coração negro

Crónica Carlos Alberto Machado

Em memória de Wenceslau de Moraes e do seu jardim de Tokushima
(a ouvir Nina Simone)

«Há um tempo na vida em que um homem perde a sua sombra.» – escrevi um livro com esta frase lá dentro. Sei por que a escrevi. Naquele momento, para aquele livro. Hoje, abri esse livro, ao acaso, e li a frase, parecia solta na página. Pensei, isto não me pertence (o que é, afinal, o que acontece a tudo o que escrevemos). Tão estranha para mim como se nunca a tivesse visto, ou dito em voz alta. Não sei porquê, decidi copiar a frase para o meu caderno de papel rude, com as suas folhas repletas de umas inquietantes manchas amarelas, deve ser uma espécie de doença molecular degenerativa. Escrevi a frase, pois. E vi apenas a sua dureza, a sua materialidade. Mais nada. 

Deixei a frase em sossego e desci até ao meu quintal. A gata alaranjada empoleirada, em absoluto sossego, na mais improvável dobra de telhas da cobertura da casa, todo o resto inexoravelmente excluído do seu plano existencial – o daquele exacto momento, depois se verá, não é, gata? Pouco mais tenho para ver: a relva esparsa sobrepujada por toda a sorte de verduras indesejáveis, os cactos imunes a todas as voltas contrárias do mundo, os nabos raquíticos, a hortelã selvagem, o funcho que tarda em desenvolver-se, as duas pitangueiras (gosto de pensar que são mãe e filha) que continuam a dar-me os seus carnudos frutos vermelhos, a figueira esperançosa, o limoeiro preguiçoso, os araçazeiros generosos, tal como as goiabeiras, em espera do tempo certo, a anoneira manhosa (deliciosas anonas, ou corações-negros, poética designação local), e os cedros que anulam o cinzento dos muros e a curiosidade reles dos passantes. Parece tudo um pouco seco, mas não é verdade.

Para lá dos muros, os raios solares reflectidos nas rochas duras emergentes do oceano a poente, ali um homem poderá ver o medo esboroar-se por entre sargaços e uma miríade de seres para nós invisíveis. Aqui, o tempo ajuda a dar consistência ao pedaço de terra que nos sustém (olha a morte!). Vê-se o medo, sente-se o seu dorso rijo, o seu amplexo, o avesso do rosto que um dia nos pertenceu. Ouvem-se as fibras secas e estaladiças nas pregaduras da sombra da memória. E olho o espaço, cada vez mais assustadoramente meu. Não é coisa de somenos. A dor é canhestra, fere e rasga às cegas.

Regresso à casa, ao caderno condenado ao desaparecimento. À frase, à frase. Caligrafo-a uma vez mais. Terá umas nervuras ocultas? Haverá uma ferramenta para escavar entre as fissuras dos seus traços a ordem imanente das coisas? Não posso deixar de suspeitar destas desagradáveis manchas amarelas. A frase que faça o seu caminho, se o tiver. 

A ilha é um mar interior onde o medo não tem por onde se escapar.