Dois contentores de lixo e uma surda-muda

Crónica Ana Marques

Ó doutora, eu hoje trago aqui uma gata, coitadita. Vamos lá ver o que isto vai dar. Depois não é só isso. Precisava de lhe contar daquela cadela. A senhora que toma conta dela é surda-muda, coitada, é claro que a doutora não tem culpa nenhuma. Também é uma vítima. Mas eu e a minha esposa também temos ajudado tanto, nem imagina. Contentores e contentores de lixo tirámos nós do quintal. É claro que os vizinhos se queixam e nós, enfim, teve de ser que aquilo é uma miséria. O marido, duzentos contos de pensão e gasta tudo nos copos. A cadela 

tem uma ferida. Agora a doutora veja lá se pode fazer, e o que é que posso eu fazer? A minha esposa limpou aquilo com água oxigenada e será que eu posso pôr mais alguma coisa? Deita sangue. Não, não é nas mamas. Eu também já tive uma cadela assim com tumores nas mamas, mas não. Não é. É assim aqui de lado, está a ver, doutora? Deita sangue e ela é surda-muda, uma desgraça. Dois contentores de lixo, mas teve que, ser. O homem é bêbedo, gasta tudo. Eu farto-me de ajudar. 

Já não consigo mais. Tenho os outros lá no estaleiro, está a ver onde é, doutora? Ali naquele terreno ao pé do cemitério como quem vem de… Mas olhe, eu tenho de vender umas propriedades que tenho lá para a Lousã. A minha mãezinha morreu há uns meses, como a senhora sabe, e eu ainda sofro. O meu irmão rendeu-se à gula. Aquilo só visto. Olhe, doutora, está a ver-me? Eu tenho 160 quilos mas ao pé do meu irmão sou magro. Acredite que é verdade. Aquilo é só casinos. A culpa é da mulher que não ajuda nada. Uma galega que não trouxe mais nada senão a rata entre as pernas. Fuma três maços de tabaco por dia. A minha esposa até tem de lhe emprestar dinheiro para o tabaco. Mas ele vai primeiro que ela, 58 anos. Entregou-se à gula. Não quer ser operado. Nem já com banda gástrica. 

Aquilo só cortando um bocado valente do estômago. Não quer! É só casinos, de maneira que vamos vender os terrenos lá na Lousã, está a ver onde é, entre aquela zona… A minha mãe morreu para lá num lar. Malandros! Mas, como eu ia a dizer, acha que ponha uma pomada que lá tenho? Um dia tinha aqui uma ferida debaixo do braço e aquilo é bom. A ferida sangra. Posso pôr? Agora a gata que vem aqui é que já devíamos ter vindo, mas não consigo por causa do estaleiro. Faz-se de noite e depois não me dá tempo. Tem quinze anos e não come. Mas ainda salta. Está um carapau seco? Pois, doutora, tem razão! Mas não conseguimos. A minha esposa, coitada, farta-se de ajudar. Dois contentores de lixo. É surda-muda e agora arranjou uma cadela assim pequena, tipo caniche, quanto é que me faz para a esterilizar? Os vizinhos já se queixam. Gosto de ajudar mas eu também não posso. Vou vender um prédio que tenho. O meu sobrinho, fui lá e tinha aquilo alugado a dezenas. Eram às dezenas de brasileiros e ucranianos. Fizeram tarimbas. Tarimbas para dormir e ele a receber. Eu a dizer-lhe, mas não tens vergonha, até podes ter aqui ladrões. Não quer saber. Vou vender aquilo tudo.

Veja lá o mínimo que me pode fazer que eu ajudo mas também não posso mais. É uma tragédia, a surda-muda. Então, a pomada serve? A gata já não é nova mas gostamos dela. Tem de pôr a soro? Ponha, ponha! Eu venho cá buscá-la. Antes que se faça noite que aquilo ali na minha zona é uma miséria. Não se pode andar na rua. Fui assaltado, levaram-me um fio de ouro, encostaram-me uma faca à barriga, uma pessoa tem medo. Isto está uma desgraça. A culpa é desse bochechas que mandou para cá esses pretos todos. Agora queremos andar na rua e sou assaltado à porta de casa. O meu irmão ainda andou com ele nos comícios. Quando era novo. Agora entregou-se à gula. Só quer é comer e casinos. Nem cabe no carro. Fica todo encolhido mas lá vai. Nem sei como se consegue espremer lá dentro. A galega foi a perdição dele, aquela espanhola. Enfim, a doutora também é uma vítima. Somos todos. Queremos ajudar mas isto é uma cambada de malandros e de chulos. Eu já cá volto. Venho buscar a gata. Está um carapau seco mas não consegui vir antes. Pois. Até mais logo. É uma desgraça.