Eu e os chineses

Crónica Mónia Camacho

Qualquer educação deve incluir, pelo menos, uma pitada de Oriente. No meu caso, trataram disso cedo. 
1984 foi o ano em que conheci os chineses. Não todos…
Imaginem o que é passar da Damaia para Macau, em vinte e quatro horas. 
Subi a Calçada do Tronco Velho, as escadas até ao segundo andar, com a roupa a colar-se ao corpo e um calor húmido impossível. Pousei a mala; e a primeira coisa que me ocorreu, do alto dos meus 11 anos, foi: este sítio tem baratas gigantes que sobem paredes. Respirei fundo e arrastei a cama para o meio do quarto. 
Os vizinhos de baixo acreditavam na vida para além da morte. À porta, deixavam um tabuleiro com regalos gastronómicos para a gente do outro mundo (nunca percebi se os mortos gostavam). Tinham dois caniches e, apesar das brincadeiras do meu pai, não dei conta que os tivessem, alguma vez, comido. Naquelas paragens, era comum haver duas portas: uma de madeira, quase sempre aberta, e uma de grade, com desenhos em ferro, que ficava fechada e permitia, a quem passava, um olhar para a parte privada da vida. E a minha curiosidade era infinita. A intimidade fascina-me.
Em frente ficava o Jornal de Macau, onde o meu pai trabalhava. Por vezes, deixava-me a fazer amizade, em chinês, com as fotocompositoras, duas miúdas franzinas, que dominavam a arte do x-acto e da fita-cola dupla. Algo que, hoje, parece surreal.
Por entre os momentos em que a Professora Cândida, de trabalhos manuais, me sentava ao pé dela, a tricotar uma camisola que não chegou ao fim, enquanto me espremia para lhe contar pormenores sobre os últimos desentendimentos do meu pai com o Governador, e eu lhe ia respondendo, o melhor que podia, incitando-a a ler antes o jornal, porque estava lá tudo, sem que ela fizesse caso, percebi que os chineses eram persistentes, resilientes e estóicos. Afinal, muitos deles acompanhavam as aulas numa língua que, sendo a oficial, lhes era estrangeira; e a que era mesmo sua tornava a leitura do jornal desportivo uma epopeia. 
Podiam comer chao min ao pequeno-almoço, na escola, afinal, viviam na terra dos tufões e nunca se sabe o que o dia traz. E, na dúvida, sorriam. Quanto maior a dúvida, maior o sorriso. Eu aprendi a fazer o mesmo. Isso, e a nunca jogar ping-pong com um chinês. Têm superpoderes e de repente abate-se sobre nós o castigo da descoordenação motora. Fui salva pelo voleibol. 
Já numa outra arte, aprendi o valor das cópias. As cópias democratizam o acesso. Podem não ter a glória do original, mas chegam onde é preciso. Como diriam os Nine Inch Nails: apenas uma cópia, de uma cópia de uma cópia. Por isso, é melhor que seja boa. E a copiar ninguém bate os chineses: são uns freaks do detalhe. Foi assim que cheguei à perfeição. Mas uso-a pouco.
O valor da liberdade chegou com a cortesia do professor de ballet, fugitivo do regime onde era primeiro bailarino: é melhor ensinar pas de deux a crianças, num apartamento, minúsculo, no terceiro andar, do que viver refém das ideias dos outros. Nunca voas suficientemente alto quando não podes ser tu.
O vermelho obedece-lhes. Vibra por todo o lado. É a cor em que a vida se passa.
Na rua fiz parar um táxi, num dia em que não acertei sequer com a minha morada. Tom acima, tom abaixo. Quão difícil pode ser? Saquei do ficheiro de cartões. A salvação vem sempre por escrito.
Em casa, a Angô passa a ferro ao mesmo tempo que vê uma telenovela onde as personagens flutuam, em coreografias, pelo telhado. Abre um sorriso onde brilha um dente de ouro e uma bondade natural.
Macau podia ser uma espécie de Las Vegas oriental: muitos letreiros luminosos, muito jogo e uma coisa chamada Crazy Paris Show. Eu costumava infiltrar-me nos ensaios das bailarinas, escapulindo-me pela passagem interna que havia no Clube de Macau. Talvez o imaginário e a sensualidade tenham ficado marcados no meu subconsciente por essas visões do mundo adulto.
Nas mãos seguro, hoje, uma chávena em loiça bago de arroz, foi talvez por isso que me lembrei dos chineses. O chá vai unir-nos sempre, em qualquer tempo.