Muito antes do intervalo grande

Crónica Matilde Campilho

31 de Março, 21:00

Confesso que ainda não cheguei ao Paraíso. Digo isto sem vergonha nenhuma, até porque o tempo da vergonha já lá vai. Será que alguém ainda se lembra de se embaraçar um pouco por conta da cor das meias que vestiu ensonado depois do banho, e que sem querer levou para uma reunião daquelas da mais alta importância? Estavam lá os chefes todos e o estremunhado de meias amarelas, coitado, perdido numa sala séria. Alto drama. Mas só para o próprio, já que entre folhas impressas e números projetados numa tela, ninguém olha para debaixo da mesa. Ninguém, a não ser o dono das meias, que passa a reunião a inteira a desejar que não reparem no amarelo. Isso era antes, e pensando bem, a vergonha era muitas vezes só uma manobra de defesa – o tempo que passávamos a olhar para as meias torcendo para que ninguém as notasse, tirava-nos o foco dos números e das folhas inúteis. Meditávamos pela cor, não éramos nada assim tão burros. Agora, e sabe-se lá por quanto tempo, já ninguém se senta à mesa para destrinçar gráficos obtusos. E cada um calça as meias que quer. Podemos até andar descalços e com as unhas por cortar. A vergonha, pelo menos aquela que está relacionada com a opinião alheia, dissolveu-se nas franjas da cortina do vírus. Ficou alojada ao lado do pó, dos restos de pão do dia anterior, até mesmo dos insetos que ainda andam por aqui indiferentes à quarentena. Não sei se no Paraíso há insetos porque, como já disse, ainda não cheguei ao Paraíso. Parei há vários meses no círculo oitavo do Inferno, capítulo XXI da passeata de Dante com Virgílio, e por alguma razão fiquei presa à cena de um diavol negro carregando ao ombro um pecador. Não terá sido exatamente o pecador que prendeu a minha atenção, até porque antes da doença geral do mundo eu já não me focava tanto nos culpados, mas muito mais nas cores das coisas. Todas as coisas coloridas, de uma maneira ou de outra, movem-se. Foi aquele movimento de um corpo cor de pele sendo arrastado pelo mundo inferior que me agarrou. Mais ainda, foi o facto de o tal corpo ir pendurado pelo pé. Descobri até uma gravura inglesa do século XIX, guardada há muitos anos pelo British Museum, que representa a cena na perfeição. Um homem às costas de um demónio, agarrado pelo pé. A história de gente agarrada pelo pé é bem antiga, e vai tão longe quanto Jacob e Esaú. Aquele que mais tarde ainda havia de lutar com o anjo durante uma noite inteira, lutou primeiro com o irmão no ventre de sua mãe. Agarrou-se ao calcanhar de seu gémeo e fez de tudo para nascer primeiro. Mais tarde os dois haviam de resolver as coisas por via de um prato de lentilhas, e isso só é para aqui chamado porque as lentilhas eram vermelhas. Um vermelho que se arrastou até às margens do Jordão, e que deu no que deu. Não digo que as cores se movem? Movem-se tanto que arrastam com elas um povo inteiro, até casa ou até quem sabe ao Paraíso. Mas não cheguei ainda ao Paraíso. Pelo menos não ainda àquele que Dante viu. A ter lá chegado foi por interpretações alheias, e não sai da minha cabeça agora aquela análise que John Ruskin fez do texto e em que nos diz que “a ausência de caminhos na floresta, a coisa mais aterradora para ele nos seus tempos de pecado e defeitos, é agora uma alegria nos seus tempos de pureza.” Pelos vistos, Dante chegou ao Paraíso e não viu caminho nenhum. Quem não vê caminho é porque não vê tempo, não vê hora, não vê o sol a pôr-se nem a nascer, não conta com o despertador a tocar de madrugada, não está nem aí para reuniões feitas de gráficos económicos e planilhas. Quem não vê caminho, e está no Paraíso, libertou-se dos suspensórios pelo qual o tempo humano nos prende a todos. E libertou-se em alegria, já que a confiar na análise de Ruskin e de todos os que passaram do círculo oitavo, quando Dante deu de caras com o Paraíso viu o seu corpo inteiro modificar-se em pureza extrema. Tudo isto se passou no século XIV. Depois da peste do Egito e depois da peste de Cipriano, mas antes da peste negra que todos estudámos na escola. Aqueles homens mascarados de pássaros, os médicos da peste, frequentaram com muita distância as nossas cadeiras de liceu, e vistos do século XX pareciam quase engraçados. Chapéu preto, vara na mão, luvas brancas e uma máscara protuberante. Aquele bico de pássaro, tão espirituoso nas aulas de história antes do intervalo grande, não passava de um enorme cone dentro do qual eram colocadas as ervas aromáticas. Durante a peste negra, pensavam eles, quem respirasse naquela máscara com as ervas dentro, estava protegido da doença. Outros tempos, outros odores, outras formas de proteção. Cada século se defende do inferno como pode, e agora nós já sabemos isso. Neste século XXI que nos apanhou tão desprevenidos e calçados com meias amarelas, julgamos defender-nos da peste assistindo às notícias durante a hora do jantar. Os que podemos, claro está, porque convém não esquecer que pelo mundo inteiro há mulheres e homens deitados em camas de hospital, imunes à notícia, mas nada imunes à peste. Este vírus, já sabemos, anda a arrasar com o Paraíso sem nem querer saber se o seu alvo humano ouviu as notícias ou passou sequer do canto décimo. Esta peste dá cabo da pertença. Dá cabo do olfato, e aí cai logo por terra a sua ligação às aulas de história. Dá cabo da alegria, porque quem é que pode sentir alegria plena sem poder abraçar os seus irmãos mais novos? Uma coisa é certa: aqueles que temos irmãos, não mais estamos preocupados em agarrar-lhes o calcanhar para com isso sermos o primeiro a chegar ao prato de lentilhas. Ainda não cheguei ao Paraíso. Não conheço essa sensação esplendorosa de não ver o caminho e de não distinguir a noite do dia, e de ainda assim permanecer em plenitude. Talvez lá chegue. Ainda hoje, tendo pouco para fazer, resolvi andar descalça pela casa de livro na mão, sussurrando às paredes o canto XXI. Fez muito por mim, embora não me tenha levado ainda ao Paraíso. Tenho tempo, assim espero. Tenho tempo para passar as páginas e para ir rememorando as aulas de história, e mais ainda para desenhar nas paredes os rostos dos meus dois irmãos mais novos. Que, por acaso sei isso, caminham cada um nas próprias casas, de calcanhares despidos e muito soltos, sussurrando a si mesmos a palavra saudade. Temos tempo. Temos caminhos pela casa. Estamos a meio caminho entre o inferno e o paraíso, e se bem me lembro das aulas de história e da catequese, ainda havemos de passar pelo Purgatório. Entre uma coisa e outra, há sempre um lugar suspenso. Só espero que o saibamos atravessar em sintonia, sem já nem pensar em números projetados, mas só aguardando serenos o Paraíso terrestre em que, entre as árvores, nos tocaremos os rostos e os pés despidos. Sem vergonha. Sem ligar à hora ou ao trajeto de cada um. Mudados, é certo, mas com alguma nova alegria alojada dentro de nossa íntima selva escura.