O homem suspenso no vazio

Crónica Pedro Caldeira Rodrigues

Há dias, no auge do confinamento, começaram a erguer uma grua frente à janela da sala que dá para o rio. Terá a altura de um prédio de 20 andares. Um processo de montagem complexo. Por fim, lá no alto, entre a estrutura rendilhada, surgiu um pequeno cubículo, suspenso no vazio, onde alguém iria manobrar o monstro de ferro. Um dia depois, o espaço estava ocupado. E a grua girava altiva nos seus 360 graus e com a sua longa lança com dezenas de metros, alimentando de diverso material os operários em construção. 

O seu nome técnico é guindaste de torre, diz-se que pode levantar até 18 toneladas, em movimento horizontal ou vertical. No final do dia, saiu do pequeno cubículo o manejador. Um negro, de gorro azul. Começou a descer as escadas interiores da grua, em direcção a terra firme. Uma silhueta minúscula vinda de uma altura descomunal. Um malabarista com coragem. Todos os dias pela manhã cedo, com chuva, com vento, com sol, sobe as dezenas de escadas interiores do monstro, e no final da tarde regressa a terra firme, em sentido inverso. Um jogo diário, um desafio diário, um abismo diário. 

Altivo, dominador, alheado da pandemia, do coronavírus, do medo que alastrou pela rua e pelos corpos, refugia-se no seu cubículo de onde maneja a torre de ferro, onde se alimenta, onde por vezes descansa. A sua missão, o seu sustento, o seu salário, a sua sobrevivência são a prioridade. 

O seu espaço vital protegido por ferro e vidro imuniza-o a qualquer ataque. Em seu redor, esvoaçam gaivotas, andorinhas, que como ele ignoram as vertigens. O ar é puro, quase rarefeito. Por vezes dobra-se para acertar no local onde deve erguer, ou deixar, o material de construção. Um dia inteiro assim, tantas horas assim, e o dia a passar, lentamente.

O operário malabarista não tem espaço ou tempo para refletir nessa guerra invisível que os poderes declararam a um vírus microscópico e que obrigou ao confinamento de metade do mundo.

Permanece, coerente, recôndito, na sua linha da frente. Alheado de qualquer sobressalto de pandemia. Não se sabe de onde vem, se tem família, quanto recebe, onde dorme, o que come, porque se arrisca assim.  

É dono desse segredo, homem solitário que todos os dias sobe ao seu claustrofóbico céu. Sem máscaras, sem luvas, sem desinfetantes, sem proteção. Apenas com o seu gorro azul. 

Lá em baixo, reina o medo, o distanciamento, o triunfo de novas tecnologias, o anunciar de uma nova forma de vida, ou os apelos para salvar uma civilização que caminha para o apocalipse, o limiar da extinção. Tivesse asas e jamais se arriscaria em terra. 

Lá em baixo, alastra a miséria. Diz-se que no rescaldo desta crise, e por entre novos exércitos de desempregados e deserdados, a natureza humana sairá mais apurada, para o melhor ou para o pior. Que o meio termo pode soçobrar nessa promoção de uma nova condição. 

O operário malabarista, o operário em construção, está alheio a toda essa avalanche de alarmes que se apoderou do mundo. Ignora as reações das sociedades face à pandemia/epidemia. As medidas que coartam as liberdades em nome da saúde pública e que não serão devolvidas de bom grado por muitos senhores do mundo. A normalização das medidas de execeção ou calamidade, a possível habituação a esse estado de coisas.  

A sua vida poderia ficar sempre assim. Na sua grua. Sem plataformas numéricas que o persigam, sem receio das diversas tecnologias que possam conduzir a uma nova forma de domínio absoluto pelo controlo das mentes, ignorando o crescente poder das grandes corporações tecnológicas ou de indústrias farmacêuticas, o fim da privacidade, as consequências geopolíticas da crise, os perigos de novos totalitarismos. No seu pequeno e altivo castelo, onde passa tantas horas por dia, sente-se protegido. 

Num admirável novo mundo que desponta e onde tudo parece ser possível, onde a internet entrou nas casas, nas vidas, e englobou os humanos numa mesma rede universal apoiada em novas vigilâncias que incluem reconhecimento facial, o humilde operário malabarista, o operário em construção, encontrou o seu reduto de liberdade.