O RNA do nosso descontentamento

Crónica Pedro Cotrim

Pandemia. Vem do grego, já sabemos. Microscópio e galáxia também, e o que nos importa é uma cura, administrada por via láctea ou endovenosa. A epistemologia perde importância nestes dias de que a biologia se assenhoreia.

O léxico que usamos incorpora agora termos e expressões de pouca monta noutros tempos e a linguagem modificou-se entre a. v. e d. v. Imunidade, soro, curva exponencial, distanciamento social, etiqueta respiratória e mais alguns rótulos biológicos e de comportamento. Será afinal a língua a permitir a conduta e a ciência, comunicando-lhes o que deve ou não ser. A política e a medicina alavancam-se nestas e nunca poderia ser doutro modo.

A língua está na raiz de tudo mas não gera qualquer vírus. Aparecem palavras complicadas para classificar este ser que nem bem vivo é. Não vive, logo pode ser. Pode ser tanto ou mais que um calhau de granito, que também não vive, no topo da Serra da Estrela. Nunca se mexerá, apesar da sua energia potencial de muitas toneladas a dois quilómetros de altura, assim desaparecesse a cordilheira. O vírus, ínfimo e à flor das cidades, consegue dissipar a sua energia em quinhões de teimosia.

Envelopes sobre ácido ribonucleico e desoxirribonucleico fazem os vírus. Parece mais difícil do que é. Crick, Watson, Wilkins e a parte da cristalografia de Rosalind Franklin, esquecida pela Academia Sueca, explicaram há sessenta anos os elos das hélices que se enlaçam. Modelos que parecem brinquedos para explicar a essência da genética quase sugerem que a vida não é mais que um parque gigante feito de lego, e porventura não é mesmo. Watson vive esta pandemia com 92 anos feitos em Abril. Os outros já eram sem nunca virem a deixar de ser e Franklin morreu antes dos quarenta e do Nobel, que apenas deixou de poder ser póstumo em 1974, com o corona do século XX: o cancro, que já foi «o grande cê». Cê nos ovários da cientista, glândulas que os outros não tinham. Atavios de tempos de feminismo na sombra. Quem consultar os arquivos de história da ciência pode soltar um palavrão começado por cê pela pouca fortuna da senhora e pela forma como um dos laureados desvalorizou o seu trabalho de um modo patibular. E talvez insulte o ilustre com outro palavrão igualmente começado por cê.

Cê de corona. Abecê elementar. Percebemos que é a gramática a fechar-nos em casa. Abecedamo-nos com leitura em todos os suportes, fugindo às novas terríveis pelas artes que já nos agradavam ou descobrindo outras. Estado de emergência ou de calamidade? Calamidade pode zumbir como um substantivo de grau maior que o anterior e parecendo mais colectivo que emergência. Uma emergência é uma casa a arder, uma calamidade é um oceano contaminado, mas os media, vocábulo que também dá pano para mangas, asseguram-nos que na vida deste quotidiano assim não é.

A ciência e as recomendações são transmitidas via verbal, seja oral ou gestual, e nunca víramos tanta desta última como nestes últimos dias. Fiquem em casa também é simples; é universal sem margem de erro. O bom acaso e porventura a sazonalidade do vírus trouxeram-nos confinamento numa parte chuvosa e ventosa do ano. Se o tivéssemos naqueles meses em que podemos dizer nove da tarde sem mentir, com o ar e o chão a darem-nos à pele e às solas a quentura do sol que entretanto até pode ter fugido para as Américas, teria sido mais duro. Mas os dias quentes estão prestes a chegar e sentimos mais emoções com o calor, diz-nos o rigor dos estudos. Vontade de sair haverá aos borbotões. A cerveja ou o capilé com os amigos precisará de reflexão anterior para prevenir uma soma de ressacas, uma vez que o que era contagiante pode tornar-se contagioso. É pena e não há trevo de quatro folhas que valha. Seguremo-nos e não acorramos à primeira tentação. Levanta-se a voz de emergência mas os cuidados permanecem todos cá em baixo, uma vez que os números sobem ainda com uma temeridade alpina.

Não se vêem miúdos a jogar à bola, mas já não se viam há muito. Desaparecidas as brincadeiras de rua ainda antes do século XXI, a sua ausência parece agora mais notada com a solidão citadina, até porque o espaço preto entre as faixas brancas dos passeios tem agora poucos carros e convida todos à futebolada. Não dá, as primeiras regras que os anos vinte nos impuseram não permitem chutos nem pontapés em grupo, muito menos cargas de ombro. As portas entaipadas das lojas também impediriam as malandrices brandas dos que andaram pela rua. Não há putos de Altino nem de Soeiro nem de Romeu Correia nem de Manoel de Oliveira em lado algum. A bola colorida de Gedeão e Freire ganha pó no chão de um quarto onde se fecha uma criança. Tudo está deserto e há natureza que percorre de novo a cidade, onde pássaros estúpidos esvoaçam e nossos irmãos por serem igualmente mortais. O planeta respira? Brevemente, pelo menos. Tivessem as nossas mitocôndrias sistema nervoso e estariam afogadas em serotonina.

De resto, economia, saúde, doença, morte, miséria, desemprego, constrangimento são entradas de uma matriz sombriamente colorida pelo coronavírus. É difícil saber o que está certo e mais ainda dizer que o outro está a actuar bem; talvez a boa informação nunca tenha sido tão essencial e a limpidez das fontes nunca tenha estado tão à prova. Demovam-se de vez as «fake news», um par de anglicismos horrorosamente ainda não consagrados em português. Cautela, sensatez e ausência de preconceitos serão ainda mais essenciais nos tempos que se seguem e em que teremos de actuar muitas vezes contra o que nos diz a nossa natureza. O conhecimento está a tentear a situação e teremos de aguardar o que nos diz quem se dedica aos estudos da minúcia. A ciência avança, mas desconhecemos a sua passada e ainda não há cura, vacina ou vaticínio seguro para o que nos rodeia agora. Entre o mais leve que o ar dos dois irmãos franceses e o mais pesado que o ar dos dois irmãos americanos decorreram cento e vinte anos. As coisas podem portanto demorar e um comboio pode esconder outro até chegarmos novamente à gama alta da felicidade. São insondáveis os caminhos das senhoras e dos senhores e teremos de ser pacientes sem abdicar de viver com todas as ganas.Defendamo-nos, percebendo os limites da nossa actuação perante uma situação que ainda não admite limites.