Um tempo sem tempo

Crónica Fernando Sobral

Conta-se que os insurrectos da Comuna de Paris, na Primavera de 1871, saudaram o novo tempo da única forma possível. Radical, é claro. Ao atirarem pedras contra os relógios, colocados nos espaços públicos, decretavam o fim da ditadura do tempo. A revolução era um tempo onde este deixava de estar nas mãos dos poderosos. Tal como tinha sido, durante tempos infinitos. O monopólio do tempo esteve, até ao final da Idade Média, nas mãos da Igreja. Nessa altura, os comerciantes e a ascendente burguesia impuseram o seu tempo: o dos negócios e o do trabalho. Aquele que tem regido as nossas vidas até agora. 

Todos sonhamos em controlar o tempo. Especialmente o nosso. Mas há muito que isso nos foi sonegado. Os ponteiros dos relógios correm velozes, fazendo-nos acreditar que não há dia nem noite, nem sonho sem realidade. Conquistámos a noite para o trabalho, o digital não dorme, mas na Birmânia ainda há monges que começam o dia quando há luz suficiente para ver as veias da mão. Não temos tempo, percebemos agora, confinados e, talvez, com um pouco mais de oxigénio para pensar. Uma das características mais tristes do nosso tempo é a impossibilidade de viver o presente. Esperamos, com uma fé religiosa, o futuro, porque os dias de hoje são-nos insuportáveis e isso gera frustração permanente. Queremos escapar a esta maldição. Fechados em casa, desejamos um futuro livre, ao sol, com abundância. No trabalho, imaginamos as férias. Projectamos todas as nossas limitações actuais em algo que está para lá da linha do horizonte. O que é o futuro?

Não queremos olhar para o espelho. Queremos viver como Dorian Grey. Mas, triste destino, somos feitos de tempo. Ambicionamos permanecer, mas o nosso destino é a morte. Ainda assim, sonhamos com a imortalidade. É a contradição fundamental da nossa existência. O tempo é como a areia que se esvai entre os dedos das nossas mãos. No Ocidente, presos num mundo onde tudo tem um princípio e um fim, nunca temos tempo suficiente. Não nos vemos, como no Oriente, num círculo de criação e destruição que se vai repetindo, como as estações do ano. Há um velho provérbio africano que nos diz: “vós, os europeus, têm os relógios e nós temos o tempo”. A grande verdade está aí: uma coisa é a medição do tempo, que nos obriga a dividi-lo em horas e minutos, e outra é a experiência dos ritmos da vida e da natureza que marcam a existência dos seres humanos nas sociedades não-industrializadas. O tempo que medimos não é o tempo que vivemos. Há muitos anos era a luz solar que regia a vida de todos. Hoje o fim da luz é uma ficção. Conquistámos tempo para quê? Por isso desprezámos as estações, a luz das estrelas e da Lua, o silêncio da noite, o momento de escutar os pássaros ou de seguir os passos calmos dos gatos. Estamos reféns do tempo em abstracto. Aquele que serve para medir o que devem fazer os homens e as mulheres. O tempo é agora digital. Tudo é abstracto. E foi assim que nos roubaram o tempo. E nós acreditámos que era para nosso bem. 

Na sociedade em que vivemos somos escravos do tempo. Só em momentos de intensidade maior, como o que vivemos, é que perdemos a percepção da sua mansa ditadura. Com o fim da cultura medieval perdemos a noção do fim do nosso tempo de vida. Da sua sacralização. Do seu mistério. Alguns julgam poder comprá-lo e alargá-lo. Nada mais fútil: nunca saberemos quando chegará o nosso crédito de tempo. A contagem obsessiva do tempo desligou-nos da conexão com a terra e a natureza. Sabemos sempre que hora é. Mas deixámos de saber onde estamos. Ulisses demorou 20 anos a regressar a Ítaca. Algum de nós teria paciência para isso? A cultura de velocidade não nos dá tempo para dar tempo ao tempo. 

Nestes tempos incertos somos, como Ulisses, vítimas da maldição dos deuses. Vivemos num mar de incertezas, como o herói, perdido nas águas, levado de um lado para o outro pelo vento. Perdemos a noção do tempo. Não o controlamos. Ele controla-nos. E não sabemos o que fazer com ele. Como na fabulosa canção de Sandy Denny, “Who Knows where the Time Goes?”, poderíamos cantar: “Across the evening sky, all the birds are leaving/But how can they know it’s time for them to go?/Before the winter fire,/I will still be dreaming I have no thought of time/For who knows where the time goes?/Who knows where the time goes?” Refugiamo-nos no nosso último reduto de defesa: a memória. Nos seus labirintos tentamos reencontrar a nossa identidade. O tempo perdido. O tempo em que não pensávamos na sua finitude. Queríamos, às vezes, ter certezas. Que tudo ficasse iluminado pela luz dos centros comerciais. Que regressassem os espaços públicos, as viagens. Viajámos para nos perdermos no mundo. E muitas vezes viajámos para nos descobrirmos. Às vezes sonhamos ser como Corto Maltese, marinheiro sem porto de chegada ou de partida, que procura desvendar o que não se vê à vista desarmada. Maltese tem todo tempo do mundo. 

Um Jorge Luis Borges próximo da morte chegou a escrever: “Não existem outros paraísos para lá dos paraísos perdidos”. Só o tempo nos permite termos consciência do que experimentámos. Ou não. A felicidade, esse paraíso perdido que atiramos quase sempre para o futuro, está talvez escondido nas pequenas recordações. É a única coisa que nos dá segurança. É algo que não voltará mais, mas que nos aconchega. Foi esse tempo que ganhámos. O tempo passa e gasta-se. É a única coisa, num mundo de consumo, que não podemos comprar. A fama e o êxito são pegadas no deserto. Desaparecem com o vento. O que conta é o que pudémos desfrutar nestes tempos em que nos sentimos imortais. O tempo guia-nos, à sua própria velocidade. Saber aproveitá-lo e tentar percebê-lo. Talvez Tiziano Terzani tenha explicado tudo isso: “estou cada vez mais convencido de que é uma ilusão tipicamente ocidental considerar que o tempo é linear e que segue sempre em frente, que existe progresso. Não existe. O tempo não é direccional, não segue em frente, sempre em frente. Repete-se, gira à volta de si mesmo. O tempo é circular”. É apenas isso, essa coisa simples, que temos de perceber. Que não podemos controlar o tempo.