Um café na rua

Crónica+Desenho Mantraste

Hoje a Liberdade é um cravo com espinhos.
Há um mês falava com amigos sobre como seria se a quarentena acabasse no 25 de Abril, mas falava como se o mais provável fosse acabar antes disso, e falava em sair à rua, em encontrar-me com eles, abraçá-los, jantar fora, ir a um bar e rir, rir sobre a quarentena que tinha acabado, rir por estar na rua sem preocupações. Liberdade. Os dias foram passando no meu quarto em Lisboa, que já não é apenas um quarto, é uma sala de estar, um atelier, uma sala de aulas, um miradouro, uma esplanada. Aqui sentado a olhar pela janela lembro-me da minha avó sempre que via a minha tia Panamá debruçada à janela do seu sótão, a espiar a rua, dizia “Lá está a Nossa Senhora de Fátima”. Agora a Nossa Senhora de Fátima sou eu, espio a rua, os vizinhos, e encontro conforto nessa contemplação. É bom saber que não estamos sozinhos.
Então veio o 25 de Abril, que teve ainda mais significado neste dia. Fiquei impaciente em casa, a revolta foi interior, senti que estava a perder algo, que secretamente toda a gente tinha saído à rua. Ouvia as carrinhas que passavam com altifalantes, o Grândola Vila Morena e a Portuguesa a tocarem, e imaginei multidões a caminharem atrás da música, felizes por estarem na rua, por voltarem a ver amigos, que só eu tinha ficado em casa. Então saí, devidamente equipado, e perguntei-me “onde é que andam eles?”, mas afinal não tinham saído. Em sinal de revolta, quase em tom de desafio, bebi um café na rua, um mês depois de ter bebido o meu último café. Fez-me estremecer de satisfação, um verdadeiro 25 de abril interior.
Agora recordo-me da ingenuidade de um isolamento ainda jovem, quando pensava que ia sair à rua sem preocupações, em que não percebia, nem queria perceber, que quando voltar a sair à rua será para uma nova forma de estar. A liberdade será um cravo com espinhos, e pergunto-me: quantas pessoas não teremos já condenado com uma simples gripe, pela nossa falta de medidas de higiene e etiqueta respiratória? 
Ao ver pessoas com máscaras, senti-me grato, grato por as usarem, por respeitarem a distância social, por aceitarem tão bem a situação em que nos encontramos. Consigo perceber quem olha para as máscaras e veja mau agoiro, peçonha, mas olhem melhor. A máscara protege mais os outros do que quem a usa. Não será a utilização da máscara um sinal de generosidade? Então ando pela rua, olho para as pessoas e vejo sorrisos, em vez de máscaras, e oiço “eu preocupo-me contigo”. Obrigado.