A Marga de Nemésio

Ensaio Luiz Fagundes Duarte

Quando conheci Vitorino Nemésio andava ele de amores por uma certa mulher que há-de ficar na história como a Marga de Nemésio – tal como o ficaram a Beatrice de Dante ou a Margarida de Goethe: Margarida Victória. Desses amores serôdios viria a nascer um espantoso livro de poesia a que Nemésio deu por título Caderno de Caligraphia e que deixaria inédito.[1]  

Margarida Victória, a Marquesa de Jácome Correia – ou, para o povo da Ilha de São Miguel, A Marquesinha –, nascida em Ponta Delgada a 31 de Março de 1919,  era filha de Aires Jácome Correia, marquês de Jácome Correia, e de Dona Joana Chaves Cymbron Borges de Sousa. Mulher de grande beleza, de enorme vitalidade, e de uma considerável fortuna familiar, relacionou-se com personalidades importantes do meio cultural português, designadamente os escritores Armando Côrtes-Rodrigues, com quem foi casada, Domingos Monteiro, Hernâni Cidade, Natália Correia e Vitorino Nemésio, tendo desempenhado ao mesmo tempo um papel de relevo na sociedade elegante portuguesa da sua época. Como empresária, foi fundadora de uma empresa de agro-pecuária pioneira na ilha de S. Miguel que se dedicava ao arroteio de terras, à criação de vitelos e à produção de rações e de forragens para gado, e que acabaria por falir. A sua vida afectiva, de uma grande riqueza humana, foi recheada de acidentes por vezes dramáticos, por vezes pitorescos, frequentemente escandalosos para os padrões portugueses e sobretudo insulares da época, mas sempre fulgurantes: casou ainda muito jovem, contra a vontade paterna, com Albano de Oliveira Azevedo, filho de banqueiro e gerente de uma loja de ferragens em Ponta Delgada, ainda seu parente pelo lado materno, de quem se divorciou ao fim de dez anos; após o divórcio, a família forçou o seu internamento na clínica psiquiátrica de Prangins, perto de Genève, onde Margarida Victória conheceu um galã egípcio, Aly Abdel Fatha El Lozy, de Damietta, com quem viria a casar no Cairo e de quem teve dois filhos, acabando este casamento igualmente em divórcio; mais tarde, casou-se com Armando Côrtes-Rodrigues, poeta do Orpheu e como ela natural de S. Miguel, de quem também se divorciaria. Durante o período em que viveu no Cairo, Margarida Victória relacionou-se com o pintor libanês Edmond Soussa, então retratista oficial das princesas do Egipto, com o qual esteve para casar, mais tarde, em Paris, e que a retratou em trajos regionais micaelenses, tocando viola da terra. 

Foi através de Côrtes-Rodrigues que Margarida Victória conheceu Vitorino Nemésio, que por ela se apaixonou, vivendo os dois uma relação amorosa de enorme intensidade que durou até à morte de Nemésio em 20 de Fevereiro de 1978, e que este foi registando em poemas escritos entre Março de 1973 e Maio de 1977, onde Margarida Victória é a suaMarga, mas também a Macaca de Fogo, a Poldra, a Cadela, a Marquesinha, ou, como natural da ilha de S. Miguel, a Corisca ou a Samiguela; no auge desta extraordinária história de amor, Nemésio chegou a criar, materializando-as em cartões-de-visita impressos, uma Sociedade Ludo-Imaginária MARGANÉSIO, e uma outra, MARGA, Ilimitada, dedicada a pura ficção e a poesia e novela. Encontram-se ecos desta relação na obra em que Margarida Victória registou as suas memórias de vida, o polémico Amores da Cadela «Pura»: confissões, cujo primeiro volume (1976)[2] foi escrito com o apoio de Vitorino Nemésio – e sobretudo no segundo volume, cuja escrita eu acompanhei e que, tendo ficado concluído pouco antes da morte da autora, só viria a ser publicado em 2004.[3] Neste último livro encontram-se dados importantes sobre as relações afectivas de Margarida Victória num período de decadência física e económica, tendo por fundo o conturbado ambiente político que se viveu em Portugal na sequência do 25 de Abril de 1974, sobretudo na ilha de S. Miguel com o movimento independentista a que de certo modo – e romanticamente, tal como Nemésio ou Natália  – ela esteve ligada; como ela própria me viria a confidenciar, uma das suas propriedades em S. Miguel terá servido de depósito clandestino de armamento revolucionário… 

Faleceu em Lisboa a 21 de Julho de 1996, na sua casa da Rua Rodrigo da Fonseca – onde com ela privei –, arruinada mas sempre bela e sedutora.

Deixo aqui um texto inédito em que Nemésio reflecte sobre o achamento da sua Marga – transcrito a partir do original autógrafo:

«13 de Agosto de 1973. Lisboa, [Rua de] Rodrigo [da Fonseca]

O velho Camões dá marca a este caderno: eu dou-lhe tinta. Margarida saiu a almoço de negócios, de sondagens, num hotel. Vai buscar o Nosso Amigo como perito e introdutor do «public relations», personagem de Os Maias adaptado à terceira revolução industrial como criado agaloado de antecâmaras de próceres. Um tipo portador do nome do autor do Paraíso Perdido. Mas esse era cego e ele não. Camões (que é marca deste caderno escolar) “via mais só por um olho do que nós por todos três” – como diz a cantiga rasteira. O alcaioto de milionário vê como pode, é claro. E eu vim aqui ter – ao caderno – para desafogar as minhas pulsões e fantasmas: digamos, o meu grisu. Tenho esta grande defesa da escrita em que me desfaço e ao mesmo tempo me recomponho.

Margarida saiu elegantíssima, de calças e vasquinha verde, uma espécie de jaleco. Saltitante mas inquieta, é claro, pela natureza da missão. Continua como um poste de alta tensão, uma encruzilhada de riscos, – e nisso se porta como um homem que leve guardada à vista uma mulher sofredora.

Reato agora este fio de tinta à carta que lhe escrevi esta madrugada cheio de admiração pelas suas Confissões de infância e adolescência. Que fados terão manuseado a sua inocência de bicho, de companheira e discípula da sua cadela Pura? Prima Raquel interrompeu-me para me dar um beijo e partir logo, testemunha discreta e calma de vida tamanha, a de Marga. Inventei este nome na minha poesia de amor e hei-de talvez aproveitá-lo para a minha recriação romanesca de Margarida. Mas não me quero apegar no mundo dos vivos a um puro personagem de que eu fizesse o duplo da mulher que amei aos setenta anos. Até porque de Margarida não sou o homólogo de Goethe. As nossas idades permitiriam que nos tivéssemos unido a tempo. Já lhe fiz as contas há muito: ela com dezoito anos em 1937, eu com os meus trinta e cinco. Seria isto situação para um rei David de cama fria? E muito menos para um Fausto que colhe uma paquerette, lance de «Velho da Horta» que nem hoje mesmo me iria. Susana e os Velhos é quadro na sala da casa da Fajã, mas não carapuça para mim. Tão pouco quero enfiar o barrete de um autor que dá rendez-vousem casa a personagens, ou que vai de prazo-dado a casa de heroína contrapontar com os seus (dela): os personagens do autor a que a heroína faz centro. Ela os escolheria, os conservaria se anteriores à constituição romanesca da firma MARGA, ILIMITADA: seria ela enfim o autor deste nosso romance existencial, que posso subscrever numa capa de livro mas não quero viver com whiskies, em dasein.

Gosto muito dela viva e quero-a sem lhe tocar, com um dedo que seja, na sua rica liberdade: tocar-lhe lá mesmo no cerne do seu ser sem cadeias, aquele que ia sendo ferido de morte no aparelho de tortura que foi o seu meio familiar. Mas como conciliar amor tão isento com o outro, o amor que lhe tenho, mas sujeito às velhas leis obscuras de varão e fêmea a par? Fêmea mulher, é claro. A mulher do seu homem, que ela jura ser e eu creio. A mulher de um homem que tem sua mulher legítima que lhe deu filhos e subiu com ele a ladeira de uma vida laboriosa… passaram rapidamente uma união  de fecundidade… os temperamentos diferentes acentuaram-se em atritos… salvou-se a entente moral… veio o primeiro longo encontro com mulher sonhada na infância… esse entendimento morreu às mãos de uma sexualidade escudo de pequenas tiranias absorventes para o varão, intoleráveis… ficou uma amizade fraterna… Margarida apareceu-me e empolgámo-nos… Amo-a num tufão de alegria e de fantasmas de ciúme. Bem diz ela que o melhor é não pensarmos no absoluto e entregarmo-nos com confiança a este entendimento mútuo – seja como for: – espantoso !».

Palavra de Nemésio.


[1]   Vitorino Nemésio, Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga. Edição de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Imprensa Nacional-Cada da Moeda, Obras Completas de Vitorino Nemésio, III, 2003.

[2]   Margarida Victória, Amores da Cadela «Pura». Confissões. Lisboa: Bertrand, 1976; 2.ª ed. 2004; 3.ª ed., 2010. 

[3]   Margarida Victória, Amores da Cadela «Pura». Confissões da Marquesa de Jácome Correia, volume 2.  Lisboa: Bertrand, 2004.