A morte e um vírus

Ensaio Fernando Fonseca Santos

Sempre achei que nasci também para não ter medo de morrer.

E muito tenho ponderado se viver não me imporá o dever de, por vezes, conviver pessoalmente com a Morte, mesmo que para isso tenha de me dispor a visitá-la.

Para mim, a Morte tem alguns e estranhos significados que cabem em palavras de uma secular Nação, com uma cultura muito rica que viabilizou conceitos realmente sábios. Tão sábios que talvez digam da Morte o que é invulgar dizer e permitam ter com ela uma relação que, em muitos aspectos, é verdadeiramente original.

Não ter realmente medo de morrer significa, antes de mais, conhecer uma Morte, sofrer com ela, construí-la e desconstruí-la conceptualmente ao longo da vida, o que é diferente de, tendo-a presente, saber sofrer com ela, num muito estreito conviver, quando se mostra mesmo necessário. E isso radica em algo que ajudou a criar, há muitos séculos, o ter de ser Bantu e dispensará aquilo que muito contribuiu e contribui para, pelo menos, nas culturas judaico-cristãs e muçulmana, se ter criado pujante e perene, perante a morte e a Morte e à volta delas, a necessidade de uma muito própria, militante e bem profunda necessidade de ilusão, que fundamenta o religioso ou, como contraponto, a outra necessidade de ilusão, quase da mesma natureza, que empenhada, categórica e materialisticamente nega tudo que possa haver depois e para lá delas.

Da Língua dessa Nação, a que a vida me ligou também culturalmente, retive, no que respeita à Morte e à morte, muitas palavras. E, com aquelas que mais profundamente me marcaram, tive a relação necessária para, mais tarde, escolher três. Foi um trabalho atento e diligente, mas que nem sequer chegou a ser muito demorado. 

Num caso, seguindo a tradição Ovimbundu, fundi o conceito vivencial e fascinante de uma Morte Mãe, amante e feminina, numa só palavra, o que obriga que se juntem cinco. 

Noutro caso, elegi, da manifesta polissemia de uma das palavras que escolhi, um sentido preciso e quase rigoroso. Fi-lo, e admito que talvez com o devido acerto, sem menorizar qualquer significado e, assim, respeitando toda a sua semântica riqueza.

E finalmente, para a terceira, substantivei, quase sem querer, um verbo e, depois, fui usando adjectivos para o talhar e a seguir polir.

Agora, nestes últimos meses em que finalmente envelheci, Morte, para mim, voltou a ser, distintos e nítidos, os sentidos que, ao longo da minha vida e em certas e muito precisas situações, couberam em Amepambasange, em Kalunga e em Wafa.

E foi preciso viver mais de setenta anos e ter visto crescer à minha volta o orquestrado pânico que um vírus pode gerar num mundo globalizado e cada vez mais corrupto, menos solidário e mais acéfalo para ter voltado a repensar, com cuidado, tudo isto. 

Procurei ser sempre um homem livre, mas sinto-me, agora, cada vez mais preso e mais limitado. Física, mas sobretudo social, política e moralmente agrilhoado a uma práxis que manifestamente desrespeita as liberdades cívicas, imposta por aqueles que fazem o que podem e o que não podem para gerar e fomentar o medo, criando assim uma injustificada insegurança. Tudo isto também para procurar que continue a crescer e se difunda a ideia de que a Segurança passou a ser Valor, quando mais não é, como sempre foi, mera função da necessidade de Ordem Social, que deve, mesmo assim, ser prévia e democraticamente sufragada e, se tal vier a acontecer, aceite depois, e saiba ser, por isso, apenas mais um princípio de uma circunstancial, mutável e, por isso – muitas vezes e mesmo em relevantes planos –, contingente moral positiva. E daqueles outros, ainda piores, que querem, de novo, impor a troca de pretensa Segurança por verdadeira Liberdade, aproveitando-se, agora, de uma situação que volta a permiti-lo e que têm vindo a gerir para favorecer este objectivo.

No fundo, o Estado, continuando a ser uma pessoa colectiva de Direito Público que tem por órgão o Governo, é, cada vez mais, um instrumento de indefinidos, mas definíveis e estreitíssimos interesses que, ao imporem-se, na ordem internacional e na ordem interna – assim, por esta ordem –, acabam normalmente por o transcenderem.

Talvez seja essa a razão mais relevante para a idade ter feito em mim o necessário para me ter voltado a sentir estranho e estrangeiro num Mundo que também sei meu. É que, em mim, neste plano, tenho hoje presente e muito viva a consciência de um saber que implica a vinculada certeza de uma inegável, inextricável e recíproca pertença.

Mas foi a tosse e depois a febre e, poucos dias depois, o saber que um amigo, com quem privo amiúde, estava infectado que me levaram a fazer novos balanços, usando antigos pesos e bem gastas, porém, ainda exactas medidas. 

Se chegam a ter alguma ordem – porque ordenação intencional de certeza que não têm – as aferições que fiz, a primeira liga-se a uma frase de um outro grande amigo. Costumava ele dizer:

– Um elefante só se caça, não se mata. E, se caçar impuser excepcionalmente um tiro, quem for caçador que se preze só deverá atirar se for capaz de chegar tão perto, andando, obliquamente, com o vento a favor, de modo a poder ver Amepambasange num dos olhos do ser que por instinto, então, se pode tornar um perigo mortal. Só quando “Aquela que Colhe” te quiser e a vires, bem presente, no brilho breve que se há-de acender no olhar desse elefante, é que, continuando a ser pecado, a igualdade que então talvez já não seja ilusória justificará aquilo que será sempre um acto bárbaro. E, se não fizeres com perfeição tudo isto, podes ter a certeza de que logo a seguir para ti e em ti sucederá pakunsangela kalunga ovola.

E eu sempre soube – até porque depois o senti algumas vezes – que era ou poderia ser mesmo assim, embora hoje, pelo menos para mim, essas vezes tenham também passado a ser vezes de mais.

Foi dessa maneira que, aos 14 anos, aprendi que Amepamsange – essa Morte Mãe que se tornou tão minha e tão especial – é uma Morte que importa realmente honrar e, para isso, se deverá conhecer, mas conhecer intimamente, o que, no caso, implica visitá-la e ser capaz depois de a revisitar.

Mas, agora, aquilo com que estou novamente a defrontar-me é a hesitação que sinto por ser ainda um espaço largo aquele que cabe entre ligar ou não ligar para o SOS 24.

Como recordei há pouco um dos modos possíveis de visitar Amepambasange, lembrei-me agora mesmo, para tentar superar sem, contudo, resolver aquela hesitação, porque é que também me convenci que deveria, neste momento, a tantas dezenas de anos de distância, visitar Kalunga, em Kifangondo. E, quando o pensei, surgiu claro aquilo que falta ao curto Estudo Militar e Histórico que, com assinalável isenção e respeito pela verdade, foi feito há anos sobre essa batalha. É que Kalunga parece que não consta dos depoimentos de quase todos os comandantes das variadas forças que integraram os dois lados que se bateram nessa histórica e crucial batalha por Luanda. 

Porém, se se ler bem a resenha que consta desse Estudo, a conclusão pode ser outra. 

Kalunga está lá, até com o demais que fez acontecer nessa batalha. Só que não está literalmente nomeada e, muito menos, culturalmente enquadrada.

E a verdade é que a Morte que matou em Kifangondo foi a que para mim, então, soube ser Kalunga. E também é verdade – e bem perturbadora – que, nesse Estudo, não está claro, nem reconhecido que, nessa primeira e verdadeira batalha do que seria depois uma longa Guerra, Kalunga tomara finalmente partido por aqueles que já tinha elegido como seus. 

A Batalha de Kifangondo para mim, no entanto, sempre foi também as curtas horas que marcaram um fim à minha juventude e moldaram, num ápice, a maturidade que normalmente implica uns largos anos de vivência adulta. Foi um fim sem resgate. Um fim em si mesmo. Porém, um fim pleno de finalidade.

Quem ainda se lembrar que é um dever visitar, no dia 10 de Novembro de cada ano, Kalunga, em Kifangondo, para, pelo menos aí, recordando e honrando todos os mortos, homenagear também o então Comandante e depois General França N´Dalo, lembrar-se-á, com certeza, ainda nitidamente, que essa tão antiga e angolana Morte, quando se juntou a um dos lados, preferiu também, então, ser Mar e tornar-se Infinito – o Infinito Finito que, como Morte, depois, numa longa e sangrenta guerra fratricida, fez gerar, com imparcialidade, de antigas e seculares Nações Bantus, o que é hoje verdadeira, coesa e indisputavelmente a Nação Angolana.  

Mas só talvez naquele dia de Novembro de 1975 e, de certeza, no dia seguinte é que Kalunga terá redimido, por fim, o sentido real que a levou também a ser Mar. O Mar, limpo de morte, que, nesse dia de Primavera Angolana, estavam já as acácias rubras floridas, Kalunga também preferiu finalmente ser. 

É que, durante quase quatro séculos, para um angolano, partir num barco de praias da sua Terra era partir como escravo para morrer muito cedo e já longe, ou para esse outro e pior e lento morrer que há em saber que não se há-de voltar à Terra a que se pertence, que se tem como nossa e da qual se foi apartado pela maldade e a cobiça de quem, em certo momento, tem a seu favor apenas mais Poder e, por isso, mais força.

E a tosse é cada vez mais persistente e a febre é cada vez mais alta e a expectoração é tão diferente.

A indecisão está agora vencida.

Para um hospital não vou. Médico não quero. Prefiro automedicar-me. Tenho relações que me permitem arranjar receitas e capacidade ainda para as aviar. Li, vi, ouvi, YouTubizei-me, nestes últimos dias, o suficiente para saber aquilo que hei-de tomar, e até o modo como devo tomá-lo. E foi quando ponderei como deveria concretizar estas opções que me lembrei de Wafa.

Compreendi, há muitos anos, pela primeira vez, o sentido real que a substantivação dessa palavra implicava quando o meu mais próximo companheiro de brincadeiras de infância tuberculizou e morreu poucos meses depois, muito longe, num Hospital de uma Missão Protestante que então havia na Serra do Lépi, quase no coração das Terras do Nano.

Foi a Mãe dele que me deu a notícia. Quando lhe perguntei pelo Jorge, desfez-se em lágrimas e disse – Wafa.

Jorge, mesmo depois de partir, fez com que Wafa – que, desde então, passei a pensar também como Morte – me tocasse profundamente em Utima – na Alma, que é Coração e que é Pensamento e onde, também com esse sentido pungente e marcante, Jorge e ela, como Morte, ainda hoje vivem e talvez convivam.

Lembrei-me, ao escrever esta última frase, que Jorge me tinha deixado também um presente. O bacilo que em mim provocou apenas o que só alguns anos depois eu soube chamar-se primoinfecção. Imunizou-me, assim, contra aquele mal. Não sei se é ainda, por isso, que mesmo agora eu vi, em Utima, a sua cara de menino, as feições perfeitas, de traços nilóticos, tão próprias do seu sangue Helelo.

E o que quebrou esse encanto, que senti, primeiro como asingwe e, depois, como ongeva, foi ter-me lembrado que tinha lido ou visto há dias que a imunidade à tuberculose ajudará como defesa contra este vírus.

Não me vou dar ao trabalho de tentar verificar se foi isto mesmo que vi e ouvi num canal do YouTubeou li num qualquer jornal digital, muito menos se será ou não cientificamente assim, pois a verdade, mesmo a científica, neste domínio e nestes últimos meses, quase que deixou de poder existir por ter preferido politizar-se nesta também descarada manobra de engenharia social.

As minhas opções já estão feitas. Talvez estejam feitas há muito e muito tenham que ver com o certo e Bantu ter de ser.

Um medicamento sei que não tomarei – Hydroxycloroquina. 

Não pelo muito quinino e camoquinas e resoquinas e daraprins com que me defendi da malária durante a infância e a juventude, mas porque, até em matérias da natureza daquelas que aqui estão em causa, não gosto de más companhias. Prefiro realmente continuar a conviver com as Mortes de que falei, ciente que me sinto daquilo que admito que virá depois.

Como a Ceifeira de Pessoa – em mim, hoje, muito do que sou capaz de ainda sentir está pensando.