A tradição da traição da tradução

Ensaio Francisco Miguel Valada

GÉRONTE : Que diable allait-il faire dans cette galère ?
SCAPIN : Il ne songeait pas à ce qui est arrivé. 
— Molière, Les Fourberies de Scapin

Os anglófonos têm uma expressão muito infeliz para definir quem dedica o tempo livre a criticar, de forma por vezes extremamente violenta, o desempenho linguístico dos outros. A expressão é grammar nazi. Não gosto desta denominação, pois trata-se do triunfo da reductio ad Hitlerum: é o nazismo a emoldurar literalmente o intuito expresso de desfazer na praça pública, com um único ataque pessoal (“és um nazi!”) e sem argumentos minimamente válidos, indivíduos que até poderão ser excelentes pessoas. Entre os grammar nazis, haverá provavelmente gente simpática, trabalhadora, amiga dos seus amigos, pagadora dos seus impostos e, se calhar, satisfeita por ter o seu cravo cravado na lapela no 25 de Abril. No limite, tratar-se-á inclusive de gente amiga dos amigos dos seus amigos e, para compor o ramalhete, até será gente que terá um gatinho em casa ou mesmo dois. Em suma, o termo nazi é injusto e ofensivo.

A maioria das críticas públicas nas redes sociais ao desempenho linguístico de outrem é feita por pessoas para quem uma gramática é tão-somente um conjunto de regras prescritivas interiorizadas. Essas regras interiorizadas e receitadas de forma geral para uma correcta utilização da língua por todos os falantes, por vezes, estão deformadas. A gramática utilizada pelos grammar nazis não foi escrita por ninguém. Para avaliarem o desempenho de outrem, utilizam a gramática interna que todos temos, alimentada pelo conhecimento da língua de que cada um de nós dispõe: às vezes os grammar nazis acertam, mas também se enganam com demasiada frequência, tal é a urgência da detecção e divulgação do erro. Todos nós teremos passado por esta fase, talvez com uma infecção ligeira, muitas vezes assintomática. Todavia, alguns que se julgam curados da obsessão, por vezes, têm recaídas.

Os especialistas – linguistas, filólogos – dividem geralmente as gramáticas em dois tipos: prescritivo e descritivo. As gramáticas prescritivas têm as tais regras para a utilização correcta da língua e vão buscar exemplos aos melhores escritores. Se um falante de português folhear, neste preciso momento, a Nova Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra, poderá confirmar a autenticidade desta minha definição. As gramáticas descritivas, por seu turno, fazem análises linguísticas daquilo que falantes não-escritores dizem e escreventes não-escritores escrevem. No entanto, mesmo as gramáticas descritivas, menos rígidas do que as prescritivas, têm integrada a noção de agramaticalidade, habitualmente indicada por um asterisco antes da forma incorrecta. Por exemplo, um portuguesamente em vez de portuguesmente será indicado assim: *portuguesamente.

Em geral, o grammar nazi (doravante, denunciante), não sendo um especialista, é extremamente importante. O passatempo do denunciante, embora amiúde irritante para muitos leigos, é meritório para os linguistas em particular, para a Linguística em geral e para a sociedade no seu todo. Com a denúncia, com a crítica acintosa e com o dedo em riste apontado ao erro do outro, o denunciante faz um louvável trabalho de campo e presta um excelente serviço público. 

O linguista deve abstrair-se da cólera do denunciante e do seu público. Cabe ao linguista, no fim de contas, separar o trigo do joio e seleccionar as denúncias relevantes para o seu próprio trabalho e, em última análise, para todos nós. Por fim, o linguista poderá eventualmente escandalizar meio mundo, explicando que determinados erros são linguisticamente justificados ou, muito melhor, justificáveis, como *tivermos em vez de estivermos ou *destribuídas em vez de distribuídas. As outras denúncias, se interessantes e importantes, serão aproveitadas por outros linguistas. Contudo, se momentânea ou permanentemente irrelevantes, as denúncias ficarão a amadurecer ou a apodrecer no arquivo público das redes sociais. 

Nada disto impede uma avaliação suplementar, isto é, a indicação da inadmissibilidade de erros deste tipo por falantes/escreventes no exercício de profissões que exigem um nível elevado de domínio da língua. Mas esse é terreno para educadores, para quem se preocupa mais com a aplicação das melhores informações linguísticas disponíveis do que com o estudo dos fenómenos linguísticos. No entanto, frequentemente, a explicação e a aplicação encontram-se ao virar da esquina e fundem-se. Mas quando isso acontece, há locais e momentos adequados e pessoas com o perfil indicado para que essa tarefa se desenrole satisfatoriamente.

Não cabe ao linguista intrometer-se na acção do denunciante. Quando o denunciante acerta, o acto de denúncia pode ter efeitos positivos. Quando o denunciante erra, esse erro findará por dispersão e insensivelmente, enfim, como o Império Romano e como o Reno (gratias tibi ago, João da Ega). O trabalho do denunciante compensa, dá os seus frutos. Há menos de um ano, numa palestra em Évora, enquanto apresentava dados linguísticos, entretanto tratados, agradeci publicamente ao denunciante anónimo que mos revelara em estado bruto. Hoje em dia, vou encontrando, aqui e ali, em páginas de denúncia de “asneiras” linguísticas, material que vai validando, através de erros ortográficos, a minha tese defendida na dissertação de mestrado. O trabalho do denunciante é um trabalho activo, de procura do erro, de publicidade do erro. É um trabalho útil e que, obviamente, deve ser estimulado.

Todavia, admito in situ, a minha denominação “denunciante” para grammar nazi, embora meramente instrumental, não é feliz. Diariamente, recebo muitas denúncias de pessoas que detectam crimes linguísticos provocados por má conduta do Estado em matéria ortográfica. Esses meus correspondentes também são denunciantes. Mas não são grammar nazis: não se trata de pessoas que, através da sua própria gramática interna, avaliam o desempenho de outrem. Trata-se, isso sim, de cidadãos atentos às consequências já há muito previstas por especialistas quanto à aplicação do Acordo Ortográfico de 1990. 

Os indivíduos em questão denunciam a ocorrência em português europeu de *fatos, *contatos, *excessões e *recessões, em vez de, por um lado, factos e contactos e de, por outro, excepções e recepções sem pê. Ainda por cima, em simultâneo, há peritos que explicam a causa dessas ocorrências. Porém, os responsáveis pelos *fatos, *contatos, *excessões e *recessões fazem de conta que a coisa corre bem. Mas há uma causa para a coisa. Efectivamente.

O consagrado conceito português denunciante traduz o inglês whistleblower. Por esse motivo, convém mesmo que prescindamos da denominação denunciante para grammar nazi. Um denunciante, no sentido de whistleblower, põe frequentemente em risco a sua carreira e os seus meios de subsistência para denunciar casos de corrupção. Por esse motivo, é protegido por lei. Um denunciante, no sentido de grammar nazi, denuncia aquilo que todos vêem, as provas são públicas e, salvo melhor opinião, as denúncias que faz são inofensivas do ponto de vista penal. Ou seja, o grammar nazi não precisa de protecção especial.

À terceira página deste texto, pergunto-me: como hei-de traduzir grammar nazi para português? O maior erro cometido por um tradutor será o de se deixar influenciar pelas balelas de políticos e comentadores ad hoc de assuntos linguísticos que, quando lhes dá o cheiro a tradução, adoram o bordão italiano traduttori traditori (tradutores traidores). Quando Eça estava aflito, sem ideias, dava uma “tunda desesperada” no bei de Tunes. No mundo em geral, quando se é monolingue e a palavra tradução vem à baila, à falta de mais conhecimento sobre a matéria, aparece sempre o traduttore que é traditore e cuja diferença, aliás, vai além do <u> de um e do <i> do outro. 

Um bom tradutor nunca é um traidor. Um bom tradutor consegue sempre transmitir na língua de chegada a ideia que o autor do original escreveria se fosse falante dessa mesma língua de chegada. Sobre a tradução, poder-se-á falar de limites impostos pelas línguas, mas não se deve atacar nem o autor da tradução (o italiano traduttori traditori), nem o acto de traduzir (o francês traduire, c’est trahir). Alguns tradutores podem ser traidores, sim, mas por distracção ou incompetência. Serão poucos. Contudo, dificilmente um político será corrupto por distracção ou por incompetência e é pouco provável que um ciclista fique dopado por ser distraído ou incompetente. No entanto, há quem ache que os políticos são todos corruptos e que os ciclistas andam todos dopados. E essas generalizações são injustas. Por esse motivo, estando nós quase a meio da primeira metade do século XXI, é incompreensível o “traduire, c’est trahir” de Éric Zemmour, em recente debate com Jack Lang. Termino com uma dúvida: facho gramatical traduzirá ou trairá o inglês grammar nazi