Conversão e existência

Ensaio Paulo José Miranda

Num curso realizado em 1981-82 e mais tarde publicado com o título A Hermenêutica do Sujeito, Michel Foucault defende, na esteira de Martin Heidegger, que «o cuidado de si» (epiméleia heautou) é mais importante para a filosofia do que «conhece-te a ti mesmo» (gnôthi seautón). Por cuidado de si entenda-se a existência na sua ocupação mais radical, que é a «ocupação de si mesmo», um dar-se conta de que somos no encaminhamento da morte, que somos tempo contado, e que isso implica uma decisão acerca do que há a fazer com o que somos. Mais do que um esforço por saber quem somos, que não nos é possível, um esforço por entender a nossa situação. Nesse curso, entre outros, Foucault relê Platão, mostrando que «conhece-te a ti mesmo» está enraizado em «o cuidado de si». Devemos conhecermo-nos a nós mesmos de modo a cuidar de nós, a saber o que é ser humano e como devemos viver essa tarefa de sermos nós. Às práticas de cuidado de si, de pensar a situação do próprio, a situação em que o humano se encontra, o pensador francês chamou «tecnologias do eu». E Foucault reconhece que, entre as formas de «tecnologia do eu» que o Ocidente conhece, a conversão é uma das mais importantes. Entenda-se por «tecnologia do eu» um conjunto de técnicas que usamos de modo a operar modificações sobre a nossa alma e o nosso corpo, pensamento e conduta, de modo a nos adequarmos a uma época ou a romper com ela. No fundo, um mecanismo de interacção de nós connosco mesmos e de nós com os outros de modo a alcançarmos ou a felicidade, ou a sabedoria, ou a imortalidade, ou mais do que uma delas. Ou seja, um mecanismo que nos depõe num modo radical de existência. Não existimos para passar o tempo e, de preferência, não nos darmos conta dele, mas para perseguir aquilo que de algum modo julgamos ser a excelência humana. Por conseguinte, a conversão não configura apenas um saber, mas antes tem como horizonte um «viver em concordância com a melhor existência».
Já no grego antigo a palavra nos colocava na direcção que hoje se apresenta, isto é, epistrophe. A palavra era originalmente lida como a formação de «epi + strophe». Em que «strophe» quer dizer regresso ou volta e «epi» é uma preposição que pode querer dizer três coisas distintas: «acerca de», «para» ou «sobre». E este «sobre», que muitas vezes pode ser sinónimo de «acerca de», aqui não encontra a sua sinonímia. «Sobre» aqui, não acusa apenas algo em relação a algo, como o «acerca de», é algo acerca de algo, mas acima do algo a que se refere. «Sobre», quer dizer «ver de cima aquilo de que se fala». Falar «sobre» alguma coisa é falar «de cima» acerca dessa coisa, isto é, é falar com conhecimento. Neste caso, falar com conhecimento acerca de um regresso. Mas este «de cima» implica necessariamente um «ir acima»; um ir para cima para falar acerca do regresso e neste subir ver aquilo de que se fala. «Epi» quer então dizer: subir alguma coisa para ver melhor uma outra. Ver melhor o regresso. Por isso «conversão» é ver melhor um regresso a si mesmo, como se estivéssemos fora de nós e a nós agora voltássemos, assistindo a esse retorno, que, no fundo, é o que diz a palavra se entendermos «epi» como «para». Deste modo, «epistrophe» deverá ler-se «voltando-se para», isto é, olhar para alguém ou para algum lado. Mas este regresso não é a alguém ou a algum lado, é o regresso a si mesmo. Assim, na convergência de um ter consciência de uma situação – que o «sobre» acusa – e um «voltando-se para», «epistrophe» apresenta-se como «um dar-se conta de que estamos a voltar-nos para nós mesmos, isto é, a regressar a nós mesmos». Este nosso movimento hermenêutico não teve outro propósito que mostrar a convergência de sentido das diferentes palavras que traduzimos por uma em português: conversão. Independentemente de o conceito ter ou não origem na palavra grega, a verdade é que conversão aponta para um ver melhor o ser humano, como se ele regressasse a si mesmo. Até à conversão, o humano esteve afastado de si mesmo, longe de si, e agora regressa dando-se conta de que esteve ausente. Assim, só através de uma conversão se pode ver melhor quem se é. Vejamos de que modo a conversão foi entendida ao longo dos tempos, com Kierkegaard – analisando o paradoxo de Abraão –, com São Paulo, Nietzsche e Platão.
O que parece estar em causa na experiência da conversão é que ela rompe com o anterior modo de ver, com o anterior ponto de vista de onde se olhava o humano, de onde se olhava a vida e, por conseguinte, representa uma catástrofe com todos os pontos de vista anteriores. Veja-se o exemplo da fervura da água para explicar o que seja isto, uma catástrofe. Durante um determinado tempo, sob o efeito do calor, a água vai aquecendo, aquecendo, aquecendo, isto é, ela vai aumentando de temperatura, mas mantendo sempre a sua qualidade líquida, a sua identidade. Não obstante, ao chegar ao grau 100, produz-se uma catástrofe. A água deixa de ser água para ser gás. A água deixa de ser ela mesma, deixa a sua identidade para ser uma outra coisa. A água vai ficando mais quente (mais forte, se quiséssemos moralizar) até ao grau 99, mas milésimos de segundos depois o seu carácter líquido desaparece para dar lugar a outra coisa. Através de uma catástrofe a água adquire uma outra identidade. É também assim que Saulo se transforma em Paulo, como veremos mais tarde.
Mas a primeira conversão verdadeira, catastrófica, de que temos conhecimento é a de Abraão, tal como Kierkegaard nos mostra no seu livro Temor e Tremor. Em que consiste esta conversão de Abraão? Analisemos, seguindo o génio de Kierkegaard. O conceito fundamental na conversão de Abraão é o paradoxo. Que é um paradoxo e como é que ele acaba por dar conta do que acontece na vida de Abraão? A história vem escrita na Bíblia e, segundo Kierkegaard, não tem sido realmente lida. Pois aquele que ler realmente a história de Abraão só pode sentir terror. Um terror enorme por aquele gesto, um terror enorme pelo que acontece àquele homem. E o que acontece, que até os leitores mais fiéis não vêem? Em idade muito avançada, Deus concedeu a graça a Abraão de sua mulher dar à luz um filho seu, Isaac, único da longa vida deles. Poucos anos depois, Deus pede a Abraão que o sacrifique, que suba a montanha com ele e, aí, o sacrifique como a um cordeiro. Abraão, ao invés de rejeitar o pedido de Deus, ou de perder a sua fé, aceita aquele pedido, aceita realizar o pedido de Deus, que sacrifique seu filho Isaac. O que está aqui em causa, segundo Kierkegaard, é uma catástrofe. Não devido ao pedido de Deus a Abraão, mas devido a este não o ter rejeitado. Esta não rejeição de Abraão coloca-o num patamar completamente diferente de todos os outros homens, um patamar diferente dele mesmo até então. Abraão deixa de fazer sentido para os outros humanos, isto é, à luz da lei que rege as vidas humanas o gesto que Abraão aceita levar a cabo deixa de fazer sentido. Abraão deixa o ponto de vista ético para entrar no ponto de vista religioso. O exemplo ético que Kierkegaard dá em contraposição a esta catástrofe é o gesto de Agamémnon ao sacrificar sua filha Ifigênia. Agamémnon, contrariamente a Abraão, nunca deixa o ponto de vista ético, pois ele sacrifica a sua filha pela cidade, pelo seu povo, pela honra do seu povo. O sacrifício de Ifigénia, exigido pela deusa Ártemis, é um gesto ético e não religioso, um gesto compreensível à luz do humano, pois os guerreiros só poderiam partir e lavar sua honra se ele sacrificasse a sua filha. Os exércitos gregos estavam embarcados, mas não havia vento que soprasse de modo a levá-los para Tróia. Ártemis não permitia que isso acontecesse, a não ser que Agamémnon sacrificasse a sua filha Ifigénia. Ao fazê-lo, tal como Kierkegaard escreve, Agamémnon troca uma ética por outra. A cidade compreende-o. Ele sacrificou a filha pelo bem de todos. Mas ninguém pode compreender Abraão. Quem pode compreender um homem que sacrifica o seu filho mais querido, o seu filho único, Isaac, que Deus concedeu numa idade já muito avançada, por uma voz que mais ninguém escuta? Esta é a grande tragédia – é este o termo que Kierkegaard usa – da vida de Abraão. Literalmente, ele vê-se afastado do humano tal como o conhecia até então, até àquela sua catástrofe. Este é o paradoxo de Abraão: ficar só, longe de todos o homens, e com Deus. Só para os humanos e pleno para Deus. Abraão põe Deus acima de si e acima do seu filho. Não no sentido de adorar mais a Deus que à sua vida e à dos filhos, pois isso poderia ser compreensível, mas de pôr como possibilidade matar o filho a pedido de Deus. Abraão diz para si mesmo, sem que o diga expressamente, Deus é quem sabe o que é melhor para mim e para o mundo, mesmo que isso implique que eu tenha de matar o meu filho. Isto não faz sentido para ninguém. Qualquer pessoa que fizesse isso seria presa, internada, afastada do convívio de todo e qualquer cidadão. E é precisamente esta decisão que faz de Abraão aquilo a que Kierkegaard chama Cavaleiro da Fé. Esta entrega ao pedido de Deus mostra claramente que Abraão está deposto num sentido acima de todos os humanos. Que sentido é esse? A fé. Acreditar em Deus. Para Kierkegaard, acreditar em Deus não é ir à missa, ler a Bíblia e seguir as suas prédicas. Acreditar em Deus é uma conversão total. E viver em conformidade a essa conversão implica necessariamente deixar o plano natural, o plano em que usualmente vivemos. Mas não é só esquecer o quotidiano, com todos os seus afazeres e prazeres, é esquecer também a razão. Aliás, a partir do século II da nossa era, quando os cristãos se referem a conversão usam a palavra grega «metanoia». E «metanoien» quer precisamente dizer «além do pensar» ou «além da razão» (ao abordarmos São Paulo ver-se-á um outro alcance da palavra, no plano estritamente cristão). Por conseguinte, a conversão religiosa configura não apenas um «além dos sentidos» ou «além do ponto de vista natural», mas também além da razão, além do pensar. Trata-se de entender que nada podemos saber ou decidir sem Deus. O que está em causa para Kierkegaard na apresentação desta figura da Bíblia é desmontar a hipocrisia – no sentido original do termo, «hypocritas», de se ser actor, de se ser outro – de todo aquele crente que não é capaz de sacrificar o seu filho se Deus pedir. Kierkgaard escreve inúmeras páginas sobre a hipocrisia da vivência da fé pelos seus contemporâneos e conterrâneos, que vão à missa como se estivessem a ir a um casamento para que foram convidados. Não se pode ter fé e viver como se nada tivesse acontecido. Se ter fé não muda um homem, então não aconteceu fé, mas outra coisa a que provavelmente devemos chamar convenção social. O que está em causa no exemplo de Abraão, para o filósofo de Copenhaga, é que a fé é radical. Ter fé implica ser outro. Radicalmente um outro. Não se pode dizer que se tem fé e continuar a ir para o trabalho e para o café e para a vida. Ou há fé ou há vida. Pelo menos vida como até ali. Temos de trabalhar, sem dúvida, mas não se vai para o trabalho da mesma maneira. Amar a Deus quer literalmente dizer: tornar-se outro.
E este tornar-se outro tem uma clareza maior para nós na figura de São Paulo. É conhecida a história. Seu nome era Saulo, era judeu, fazia parte da nobreza e era um fervoroso perseguidor de cristãos. Um dia, na estrada de Damasco, uma luz intensa ilumina o céu, o cavalo empina-se, fazendo-o cair. Cristo surge-lhe no céu e pergunta-lhe por que razão ele O perseguia. Saulo cega e a cura da sua cegueira é-lhe revelada por Cristo: Saulo só passaria a ver o mundo quando passasse a vê-Lo, a Cristo, como seu Senhor. Esta «cura» aconteceria através da visita de um dos fiéis de Cristo, já em Damasco, Ananias. Temos aqui duas realidades que parecem antagónicas: por um lado Saulo cega e deixa de ver, por outro se reconhecer em Cristo o seu senhor passa a ver o mundo. Ou seja, para voltar a ver o mundo tem de se tornar escravo. Mais: tem de se oferecer ele mesmo como escravo. Na verdade, o que São Paulo nos mostra com clareza é que, segundo o ponto de vista cristão, tornar-se escravo é libertar-se. Em sentido estritamente Cristão, «metanoia», que mais tarde traduziremos por conversão, quer dizer duas coisas simultaneamente (para além de ser «além do pensar»): arrepender-se e tornar-se outro. Arrepender-se de ter sido aquele que foi e tornar-se aquele que deve ser. Ao tornar-se outro, ao passar a ver o mundo com os olhos de Cristo, Saulo deixa o seu nome, pois já não é o mesmo que fora, passa a ser Paulo e a desprezar aquele que foi. E a conversão de Paulo leva-o não só a si mesmo, mas a todos os outros. Porque converter-se em sentido cristão é tornar-se Cristo, à imagem de Cristo. Por conseguinte, um dar-se aos outros.
Aquilo que, antes de mais, define o ser humano é o tempo. Tempo é o que se acaba quando acabamos e o que começa quando começamos. E, na medida em que nós somos tempo, o emprego que fazemos deste é aquilo que somos. Definimo-nos pelo tempo que somos, isto é, pelo que fazemos nesse tempo que somos. E aquele que usa o seu tempo, que se usa a si mesmo no tempo dos outros, na vida deles, é aquele que está afectado pelo tempo que não é o dele, isto é, aquele a quem a vida dos outros é tão ou mais importante do que a sua. A esta afectação São Paulo chamou, em grego antigo, ágape. Ágape teve a sua tradução latina na palavra caritas e chegou até nós como caridade. Assim, caridade não é dar esmola a outrem, mas tempo a outrem. Caridade é darmo-nos ao outro, darmos o nosso tempo ao próximo. Quem se dá ao outro, dá-se por gosto. Como diz a expressão portuguesa: quem corre por gosto não cansa. Quem se dá ao outro não é escravo daquele a quem se dá. Dar-se ao outro liberta. A libertação é, por conseguinte, em sentido cristão, libertarmo-nos de nós próprios e darmo-nos àqueles que amamos. Darmo-nos, dar o tempo que somos e temos a quem gostamos, é libertarmo-nos de nós mesmos. Levantando um pouco a saia ao que se segue, é libertarmo-nos da caverna onde vivíamos, como diria Platão, ou dos ideais pré-‑fabricados que nos tinham imposto, como diria Nietzsche. Parece um paradoxo e é: libertar-se é sair de si; sair do que fizeram de si. E, literalmente, isto cai em cima de Saulo. Vem de cima para baixo e abate-se sobre ele. Saulo passa a ver isto, compreende isto. O que está em causa neste «abater-se sobre si» é que a conversão nunca é uma decisão. A conversão nunca depende inteiramente do próprio, daquele que se converte. Em sentido cristão, ela é uma graça concedida. Pois a conversão cristã só se dá pela fé e esta é uma graça divina. É Deus que faz com que um determinado humano tenha fé e não o humano que decide ter fé. A fé abate-se sobre ele. Deus decidiu a fé nele.
Mas qual o sentido da conversão alcançar o paradoxo, se não se for religioso? Fora do ponto de vista religioso, um dos exemplos mais conhecidos do paradoxo é o que é enunciado em Ecce Homo por Nietzsche: «tornar-me naquilo que sou», que é uma perífrase de um verso de Píndaro. Mas repare-se bem no escândalo da frase «tornar-me naquilo que sou» e mostremos o seu paradoxo. Para Niezsche, tornar-se naquilo que se é, antes de mais, é abandonar Deus e todas as convenções que nos moldaram. O humano vem ao mundo e veste-o como ele se apresenta. Se for no deserto veste um turbante, se for em Manhattan veste fato e gravata, se for na selva cobre-se o menos possível. E o que se passa com o vestuário, por maioria de razão, acontece com o comportamento e com as ideias. Falamos e agimos de acordo com o que nos ensinaram, com o que fizeram de nós. No fundo, todo o humano está soterrado sobre os escombros das convenções. Tornar-me naquilo que sou é, antes de mais, escavar nestes escombros até me encontrar a mim mesmo, até encontrar o humano que sou e não o que os outros fizeram de mim. A nossa vida é uma maçã que alguém trincou e depois de mastigar pôs em nossa mão para comermos. Nietzsche pretende que cada um de nós trinque a sua própria maçã, que sinta o sabor da vida que ele mesmo pode criar. A isto, a escavar os escombros até se encontrar ou a abandonar a maçã previamente mastigada por outros, Nietzsche chamou übermensch, o sobre-humano ou super-homem, de modo a distingui-lo do deteriorado humano, agarrado às saias da sua mãe judaico-cristã e de todos os valores previamente mastigados. Este sobre-humano é, obviamente, aquele que se converte, aquele que caminha montanha acima e até às profundezas dos mares alargando o seu horizonte sobre o humano – alargando o horizonte do seu coração, diria São Paulo. Mas o sobre-humano não alarga o seu coração, alarga a terra, alarga a natureza. Melhor: restitui a natureza ao humano, restitui a natureza perdida na religiosidade judaico-cristã. O sobre-humano sobe a montanha e desce ao fundo dos mares à procura de si, procurando tornar-se nele mesmo, tornar-‑se naquilo que ele mesmo é. Sobe à montanha e desce às profundezas dos mares para deixar Deus, todas as convenções com que nos quiseram construir, e regressar à sua natureza, à sua humana condição. O sobre-humano despe tudo aquilo que quiseram que ele fosse e não é ele, todo o excesso de alteridade que o impede de se ver a si mesmo, de se ser a si. O sobre-humano alarga o humano. Por conseguinte, o sobre-humano é aquele que cria os seus próprios valores, aquele que não segue o que já encontrou quando nasceu. Nos textos de juventude, Nietzsche usava o termo génio para designar o que mais tarde designou por sobre-humano. Ter isto bem presente é importante para que se entenda o que Nietzsche tem em mente quando diz übermensch, pois sobre-humano não é outra coisa senão um humano criador, um humano com capacidade de elevar o humano, um humano acima da esterilidade de não se fazer melhor do que é. O sobre-humano está imerso na sua cultura e na criação dela. Assim, tornar-se naquilo que se é é despir-se de tudo o que nos foi imposto, de tudo o que não somos nós e criarmos nós mesmos este nosso nós. Tornar-me naquilo que sou não é voltar a ser quem fui, mas quem nunca fui ainda. Quem nunca fui, não porque não posso ser, mas porque não me deixam ser, e eu permito que assim seja. Os outros não me deixam ser quem sou com a minha cumplicidade.
Por conseguinte, tornar-me naquilo que sou é libertar-me. Libertar-me do mesmo modo que antes tínhamos visto em São Paulo. Aquele que se converte liberta-se. Converter-se é libertar-se. No caso de Nietzsche, libertar-se do medo da morte, que é o que se esconde por detrás de todos os valores judaico-cristãos, para assumir plenamente a vida, a vitalidade da vida. Se para São Paulo a libertação é darmo-nos aos outros, seguindo Cristo, para Nietzsche a libertação é libertarmo-nos das ideias que nos tinham imposto, do outro que nos tinham imposto, seguindo o que poderemos ser. Nietzsche propõe-nos claramente uma conversão, mas nos antípodas da conversão paulina. Converter-se, aqui, é deixar os outros que somos para sermos nós mesmos. Um nós mesmos que temos de criar, a partir do momento em que nos damos conta de que não existe. Nós sempre fomos uma ruína de nós mesmos, soterrados pelos outros, e agora temos de nos construir. Pode esta conversão ser totalmente de responsabilidade pessoal? Isto é, podemos decidir converter-nos, subir a montanha ou descer às profundezas dos mares, à força da nossa vontade, contrariamente à conversão cristã? Parece ser isso que está em causa em Nietzsche, que a conversão é a expressão de uma vontade. Temos de querer mudar. A conversão nietzscheana está configurada na vontade do próprio, ainda que não se saiba, em boa verdade, se isso chega ou se depende inteiramente de nós esse querer. Certo é que ele não depende de nenhum deus.
Mas já muitos séculos antes, também Platão entendeu que «tornar-se naquilo que se é» era uma libertação. Uma libertação do fundo da caverna, onde o nosso conhecimento das coisas não passava das sombras que víamos projectadas nas paredes através da luz das fogueiras. Para Platão, libertar-se era libertar-se do jugo dos sentidos. Não só dos sentidos, mas também das opiniões, da doxa, libertar-se de tudo o que não dê um conhecimento seguro acerca de nós e das coisas. A alegoria da caverna tem três partes distintas: a apresentação dos prisioneiros; a libertação de um deles; o regresso deste ao convívio com os companheiros.
Comecemos pela apresentação da primeira parte onde encontramos uns estranhos prisioneiros, que nasceram e cresceram acorrentados de modo a não se poderem mexer, nem virar a cabeça, frente a uma das paredes da caverna, de costas para um caminho onde passavam pessoas, animais e eram carregados objectos. No outro extremo da caverna, ao cimo, várias e fortes fogueiras iluminavam e aqueciam a caverna. Assim, tudo o que passava no caminho, animais, pessoas e os objectos que carregavam, era projectado em sombras na parede em frente aos prisioneiros. Estes tudo o que apreendiam da realidade eram as vozes uns dos outros, as vozes que vinham de trás deles e as sombras. A realidade era literalmente sombras. E havia, naturalmente, uns que conseguiam perceber melhor o que se passava – ou que julgavam passar-se – através das sombras projectadas e das vozes que ouviam. Estes eram considerados pelos companheiros de cárcere como mais inteligentes. A segunda parte da alegoria começa com a libertação de um dos prisioneiros, que é levado à força à luz do dia, ao mundo para lá da caverna. Ele resiste, evidentemente, pois está a ser afastado do mundo tal como o conhece. Depois de um tempo de habituação à luz do sol, começa a ver as formas das coisas, as coisas em si mesmas e não as suas sombras. Percebe que as fogueiras são uma imitação do sol, que as sombras são uma imitação das coisas e dos seres vivos. Compreende então que até aí sempre viveu num mundo de opinião, da doxa, e não num mundo de conhecimento. A terceira parte da alegoria é o retorno do prisioneiro ao convívio com os seus antigos colegas. Já não se importa com o psedo-conhecimento que eles têm das sombras, identificando todas elas, pelo contrário, até se ri disso, e diz que nada daquilo é verdadeiro, passando a contar o que viu e como a realidade é. O que acontece é que os outros não só não o conseguem escutar, julgam tudo o que diz um absurdo, como tentam a todo o custo obrigá-lo a calar-se. E, escreve Platão, só não o matam porque não podem.
Depois da apresentação da alegoria, mostre-se o que aqui está em causa. Tal como vimos antes em Nietzsche, Platão também nos mostra que com todas as opiniões que aprendemos, inseridas na cultura onde crescemos, a grande parte de cada um de nós são os outros. E o que é pior: somos as opiniões e as crenças dos outros e não o pensamento dos outros. Crescemos acreditando no que nos ensinam, no que vemos, e para além da imagem dos prisioneiros da caverna, actuamos como ovelhas, umas seguindo as outras, tentando esquecer o abate. Pensar como os outros, sem examinar a fundo o que isso significa, são as nossas correntes. As nossas correntes são as histórias que lemos, os conselhos que aceitamos dos nossos pais, a educação destes e do país onde vivemos. As sombras que os homens vêem na caverna são precisamente o nosso ponto de vista usual, o dia-a-dia, a vidinha, que todos temos e à qual nos entregamos sem reservas. Vivemos resolvendo problemas, sendo inteligentes, construindo pontes e edifícios, mas sem por um momento saber quem somos. A nossa inteligência está amarrada às correntes pragmáticas, de funcionalidade, que impedem de ver a vida humana na sua excelência. A nossa inteligência trabalha nas sombras. Não apenas nos afazeres do dia-a-dia, mas nas contínuas distracções, no mundo sombrio do entretenimento. Vivemos nas sombras. Mas há em nós a possibilidade de subir até à luz do sol, isto é, nós temos a possibilidade de ir para lá da vidinha, para lá das aparências, para lá de viver de modo funcional, deixando o escuro da caverna e as suas fogueiras. Mas, contrariamente ao querer de Nietzsche, em Platão este movimento não depende apenas do próprio. Somos forçados ou conduzidos a esse movimento, tal como o prisioneiro da caverna. Bem mais próximo de nós, Gilles Deleuze, em Diferença e Repetição, também nos chama a atenção para o facto do pensar não ser uma escolha. Nós somos forçados a pensar. Pensar é feito por choque, por um «ser obrigado». E Martin Heidegger, em Ser e Tempo, lembra-nos que só saímos do ponto de vista usual do quotidiano quando este quotidiano é interrompido, quando aquilo que estamos à espera que aconteça não acontece, como por exemplo tentar abrir uma porta que deixou de abrir. Nesse momento, interrompemos o nosso modo de estar em «piloto automático» para, por instantes, nos darmos conta do que é necessário para abrir uma porta e tentar descobrir a razão pela qual aquela não abre. Regressando a Platão, sair da caverna implica que algo nos aconteça. Não depende inteiramente de nós, como parece ser o caso em Nietzsche, mas, quando se partem as correntes e se enfrenta a luz do sol, já não tem volta. Em Platão, em vários textos, Sócrates aparece como aquele que impulsiona, espicaça os outros a serem quem são, a cuidarem de si e não apenas dos seus afazeres. Cuidar de si no sentido duplo: da sua vida no encaminhamento da morte e da sua vida no encaminhamento da verdade, isto é, de saber quem se é (é aqui que o «conhece-te a ti mesmo» se interliga com o «cuidar de si»). Depois de ser instigado ou espicaçado, aquele que começa a pensar, a interrogar o seu ser, a sua existência, já não consegue mais encontrar conforto na televisão, no centro comercial, nas compras ou nos copos à noite com os amigos (pelo menos como forma de vida e não episodicamente). Por conseguinte, o que está em causa na terceira parte da alegoria da caverna, do retorno do prisioneiro ao convívio com os seus antigos colegas, é que o conhecimento nos afasta uns dos outros, porque nos conduz a nós mesmos. Não ficamos fascinados connosco, mas com aquilo que descobrimos acerca de nós, acerca da vida humana, e não queremos mais do que continuar a percorrer este caminho, a percorrer esta investigação. Para aquele que começa a pensar, aqueles que discursam acerca do seu brilhantismo a ganhar dinheiro ou a escrever um livro são iguais aos prisioneiros na caverna que se gabam de interpretar melhor do que os outros as sombras que vêem. Por mais brilhantes que sejam os prisioneiros a interpretar sombras, as coisas não passarão de sombras e as suas cabeças não deixarão de estar acorrentadas. Para os prisioneiros a realidade nunca irá passar de sombras e os pensamentos nunca passarão do que se ouve falar, isto é, de opiniões. O mundo da opinião é o mundo das sombras. Para Platão ser livre é pensar. Ser livre é não ter opiniões, pois o mundo da doxa é o mundo das sombras, o mundo dos presos. O que está em causa em Platão é a guerra da paideusia contra a apaideusia, ou seja, a guerra da educação contra a ignorância. E educação não é saber coisas ou portar-se correctamente, mas estar no encaminhamento da verdade. Estar no encaminhamento da verdade é que é a paideia ou paideusia, que tanto importa a Platão. Estar no encaminhamento da verdade é estar no encaminhamento de si mesmo, do que é a vida humana. Por conseguinte, estamos perante uma conversão. Deixar as sombras, ver a luz, caminhar no sentido de ver a vida humana, de lhe perscrutar o sentido é uma conversão. Por isso mesmo, aquele que se torna um outro, que vê a luz, não consegue regressar aos antigos companheiros. Não deixa de ser curioso que é esta mesma situação que acontece com Abraão, tal como Kierkegaard nos apresenta. Abraão fica só com Deus, pois ninguém consegue entender a sua entrega radical a Deus, o prisioneiro que é libertado fica só entre todos os seus pares.
Há, contudo, uma diferença substancial. Abraão nunca duvida de Deus, nunca lhe oferece obstáculos, e inicialmente o prisioneiro prefere continuar preso com os outros a encetar a subida para fora da caverna. Sair do mundo das sombras para a luz é um exercício tremendo. Nós gostamos mais dos outros do que de nós próprios. Isto é, nós gostamos mais de estar com os outros do que com nós próprios. Nós gostamos mais do apreço dos outros do que de nós próprios. Por isso, o gostarmos de histórias, de literatura, e não de filosofia. Repararam no que acontece quando o prisioneiro que foi libertado regressa ao convívio com os outros presos? Ele é ostracizado, ele é alvo de troça, de chacota. Porque a maioria tem sempre razão. Não tem, mas parece. E num mundo de aparências, o que parece é. Na verdade, nós caminhamos no sentido de sermos cada vez menos nós próprios. Estamos a transformar-nos em fast food de pensar. Cada vez mais tudo nas nossas vidas é pronto-a-comer, pronto-a-fazer, pronto-a-pensar, pronto-a-ser, pronto-a-qualquer coisa. O que é bom «é pronto a». O humano não tem uma costela de acomodado; há uma costela nossa que tem um humano acomodado. O humano não é uma acomodação com pernas, é uma acomodação com sofá e controlo remoto. Nós não queremos pensar. Se pudéssemos, nós vínhamos com pilhas e com alguém que as mudasse. Por isso, como entender que tenhamos que ler Platão, Heidegger, Deleuze e, não só pensar, mas pôr em causa tudo o que pensamos que pensávamos? Pôr em causa a nossa própria vida? Não é só a libertação dos sentidos, das correntes dos sentidos, mas também a libertação das opiniões, daquilo que julgávamos serem pensamentos, daquilo que julgávamos ser pensar, daquilo que julgávamos. E, como se viu no final da alegoria, ficamos sós. Ficamos sós como se fôssemos mortos-vivos, como se o nosso pensar fosse um caixão onde passamos a viver, pois os outros não nos querem ouvir, não querem sequer que nos aproximemos, porque nós atrapalhamos as suas vidas, as suas vidas de prazer e de entretenimento e de esquecimento de si mesmos.
O que está em causa em Platão é que aquele que se entrega à filosofia torna-se incómodo, porque não mais faz parte do grupo, não mais faz parte do que interessa à nossa sociedade. E esta, como vimos com o julgamento de Sócrates, irá fazer tudo para que o filósofo morra. Não literalmente, como na Atenas de Platão, mas metaforicamente: fazendo do filósofo alguém que não interessa. Mostrando a todos como a filosofia é uma perda de tempo, que só serve para se endoidecer e não traz nenhum proveito. Ninguém compra carros, casas, barcos e amantes com a filosofia… Platão atacou todas as nossas convicções, todas as beiradas onde nos pudéssemos agarrar para evitar a queda. Quando milénios mais tarde, Marx escreve «a religião é o ópio do povo», em comparação a Platão está a ser um menino, pois para Platão, os sentidos e as opiniões são o ópio do povo. O sexo é o ópio do povo; a moda é o ópio do povo; as viagens são o ópio do povo; a literatura é ópio do povo, em suma, o entretenimento é o ópio do povo. E hoje inventamos novos ópios a cada momento: os reality shows, as telenovelas, as sagas dos romances, o futebol e até a comida gourmet… A religião é apenas um dos muitos ópios, porque o único deus, e que gera todos os ópios, é os sentidos e as opiniões. Assim, a Alegoria da Caverna mostra-nos aquilo que é a conversão tal como Platão a entende. O tornar-se ele mesmo através de uma ascensão de uma vida através dos sentidos e das opiniões para uma vida do pensar. Converter-se ao pensar é tornar-se outro.
Por conseguinte, em Nietzsche e Platão estamos perante a mesma necessidade, a mesma urgência de libertação, apesar das suas hermenêuticas antípodas. Para Nietzsche o humano tem que se tornar sobre-‑humano, isto é, tem de se libertar das ideias, tornar-se natureza e alargá-la, alargar o fazer e a apreciação desse fazer, isto é, alargar a criação. Para Platão, o humano tem que se libertar do jugo dos sentidos e das opiniões, do jugo daquilo que parece ser, mas não é, como ele mesmo escreve no seu livro Sofista. Podemos afirmar sem medo algum de errar que, independentemente das hermenêuticas antípodas levadas a cabo para a libertação do humano, esta libertação é tanto necessária a Platão quanto a Nietzsche. Parece que eles discordam em tudo, menos em que o humano nasce escravo e precisa de se libertar. E não é também escravo, para o cristão, todo aquele que não vê a sua própria vida em Cristo, todo aquele que não vê a sua própria vida para além de si mesmo, como se a sua vida Real e Verdadeira estivesse para além da sua vida?
Apressadamente poderíamos ser levados a pensar que o sentido da vida humana se encontra na fuga, que existir é fugir. Poderíamos ser levados a pensar que a vida humana é fugir de si própria para se encontrar verdadeiramente em si. Mas fuga pressupõe algum medo, e na catástrofe de qualquer conversão há, tínhamos visto antes com Abraão, um ver acima do medo que se sente. Um ver acima do terror que a acção que nos é pedida causa. Pois fugir e libertar-se não são da mesma ordem de significados. Aquele que foge nunca se encontra. Aquele que se liberta encontra-se a si mesmo. Aquele que é livre não precisa de fugir. Podemos falar, recuperando conceitos anteriormente usados, que a vida humana só encontra o seu sentido pleno se se converter, isto é, se se libertar daquilo que ele julgava que o mundo e o humano eram, para passar a ver como o mundo e o humano são. No fundo, converter-se é passar a ver. Converter-se é deixar de ser cego.
Toda a conversão é um ir ao encontro de si, ao encontro da existência humana que somos. Em Platão isso é mostrado através da Alegoria da Caverna, onde se dá uma libertação das sombras em direcção à luz. Em Nietzsche isso dá-se com o sobre-humano que se liberta de todos os preconceitos que soterram a própria existência. Em São Paulo isso dá-se com a libertação de si mesmo em direcção a Cristo. Independentemente das diferenças substanciais, há algo que une todas estas propostas de conversão: um movimento radical contra o mundo e contra si mesmo de modo a configurar o eixo certo da existência humana. Ou seja, sem conversão, seja ela qual for, não há existência humana verdadeira. Fazendo um paralelismo com os estafados versos de Baudelaire – embriagai-vos sem cessar, de poesia de vinho ou de virtude, mas embriagai-vos –, e a despeito de que nenhuma conversão dependa inteiramente de nós, a não ser talvez a de Nietzsche, termino este texto dizendo: convertei-vos – à alegoria da caverna, ao sobre-‑humano ou a Cristo, mas convertei-vos. Só na conversão poderão ser uma versão melhor de vós mesmos. Melhor seria dizer: só aquele a quem acontece uma conversão pode aspirar a ser melhor do que é. Ainda que não se saiba bem para quê.