Desconfinar as ideias

Ensaio Rui Pereira

a ideia de que todos temos uma obrigação determinante de diminuir a crueldade, de tornar os seres humanos iguais relativamente à sua possibilidade de sofrimento

Richard Rorty

Um par de meses volvidos sobre a chegada a Portugal da onda pandémica do SARS-Cov 2, a iminência para milhões de pessoas de uma catástrofe económica de proporções inauditas começa a pôr termo ao isolamento sanitário de uma grande parte da população. Das oscilações perceptíveis nas estratégias da comunicação governamental em diferentes países extraem-se, para lá da litania estatística relacionada com a epidemia, o relativo optimismo no tocante à contenção e limitação das mortes, como a profunda decepção face aos imperativos políticos que a situação ditava aos grandes decisores, ou seja, aqueles que têm na sua mão os instrumentos supra e transnacionais de política eco-nómica, financeira e monetária para responder humanamente ao desastre humanitário que não precisamos de adivinhar porque já o temos connosco.

Relacionadas com um par de reflexões de pensadores que prezo e que há muito me acompanham, duas grandes expectativas marcaram, no que pessoalmente me diz respeito, o advento deste episódio pandémico. 

Em primeiro lugar, relacionar a sua irrupção com a eventualidade de saber se esta era ou não a catástrofe em que pensava José Bragança de Miranda, quando, em 1997, escrevia no seu “Política e Modernidade – Linguagem e Violência na Cultura Contemporânea” (p. 24), sobre os elementos do liberalismo que instituíram uma “ordem política da qual só sairemos por catástrofe”. E, em segundo lugar, tendo de há muito renunciado no meu pensamento à grandiloquência gótico-romântica e, com frequência, demagógica da realização dos paraísos na Terra, se este seria um verdadeiro acontecimento ou não. Isto é, se esta seria a ocasião em que se efectivaria o conteúdo da reflexão rortyana com que epigrafo este texto (ver “Contingência, Ironia e Solidariedade”, p. 120) , colocando-nos, por fim, a todos, em circunstâncias de igualdade relativamente à possibilidade do sofrimento, único verdadeiro acontecimento de que a meu ver podemos ainda ser acometidos, para além, claro, de uma hipotética extinção como espécie e planeta.

Muito rapidamente começou a ver-se que não era esta, ainda, a condição de possibilidade de nenhuma das duas concreções. Quer a metáfora de um “vírus democrático” que não escolhia quem infectava, quer a perspectiva de uma catástrofe cujo único mérito poderia vir a ser o de revolucionar as modalidades da existência humana na direcção de alguma decência, prontamente puderam excluir-se dos horizontes do plausível. Estarmos todos na mesma tempestade não significava que todos estávamos no mesmo barco. Assim como, nas técnicas de governamentalidade para lidar com a situação, se foi tornando claro que o objectivo fundamental era evitar a saturação dos serviços de saúde e limitar os danos da paralisação económica, relativamente à qual o que foi emergindo dos comunicados e controvérsias foram velhas palavras destinadas a lidar com novas situações.

Às palavras escritas por Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, no Financial Times de 25 de Março, segundo as quais estávamos perante “uma tragédia de proporções bíblicas”, respondeu a Comissão Europeia com os livros de catequese de Milton Friedman. O presidente dos Estados Unidos aventou, aos seus, a hipótese de beberem lixívia. O do Brasil garantiu, contra toda a aparência racional, não ser coveiro. Todos estes, enfim, momentos de um longo etecetera de palavras cuja banalidade absurda esconde a profundidade do abismo em que já tínhamos mergulhado sem mesmo precisarmos da ajuda de vírus algum.

A tradução destes enunciados pela vulgata popular acompanhou a melopeia. Dos primeiros e aterrados apelos à mudança de vida a que teríamos de proceder mal nos apanhássemos de novo nas ruas, foram-se sucedendo os – com aqueles contraditórios – apelos para o regresso à normalidade. Nada fora, afinal, questionado. O mundo ia-se e vai-se preparando para o esquecimento. Presumivelmente, continuará igual a si mesmo, como predizia, contra a esperança espantada e espantosa de um Slavoj Zizek, o cepticismo de um filósofo de mais idade, como Alain Badiou (https://qg.media/2020/03/26/sur-la-situation-epidemique-par-alain-badiou/). O mundo prosseguirá, muito provavelmente, com pouco mais do que uns milhares de mortos a menos, sobretudo entre os mais velhos, os mais doentes e frágeis, e com uns milhões – muitos milhões – a mais de pobres ainda mais desesperadamente pobres e famélicos, sobretudo entre os que já pobres eram, sobretudo, entre os mais débeis, os mais esquecidos, os mais indefesos e invisíveis de todos. 

Com estatuto de novidade, algo emerge, porém, nos noticiários. O empobrecimento de muitos dos que, sendo pobres sem o saberem, acreditaram nos arautos da riqueza como ideologia e teleologia para o humano, a golpes de desregulamentação e oportunidades fortuitas. Como constatavam os apóstolos do reaccionarismo que a si mesmo se dá a conhecer por neoliberalismo, a precarização da prestação do trabalho atingiu um tal expoente que mesmo os Estados mais empenhados em auxiliar as pessoas que perderam os seus rendimentos têm dificuldade em encontrá-las para fazer-lhes chegar os apoios (Financial Times, 3 de Abril, https://www.ft.com/content/7eff769a-74dd-11ea-95fe-fcd274e920ca?fbclid=IwAR3hgc1WBINp0hiWXfwa82Z8ss43LDJhnB4K-zMlRSaRyPs6yIwv%E2%80%A6). A pandemia põe assim em evidência, também sem grande novidade, talvez valha a pena acrescentar, que é mais fácil arranjar recursos técnicos para localizar e rastrear um infectado do que registos oficiais de emprego para encontrar uma família de precários em desespero.

A fragilidade da ilusória e seduzida condição pequeno-burguesa (hoje eufemizada como debilidade da ‘classe média’) tropeça violentamente, nos momentos verdadeiramente difíceis, na dramática realidade dos sonhos ideológicos votados eleitoralmente a preço de saldo. O velho estribilho da “nova pobreza” enxameia uma vez mais os noticiários produzidos por jornalistas, editores e realizadores provenientes dos estratos populacionais cuja aflição reportam com aflição. A sua sensibilidade é menor e mais distraída para com os pobres de sempre, aqueles que a indigência mental, também de sempre, condena à invisibilidade dos subúrbios das cidades e do mundo. A ONU adverte para a eventualidade de surtos incomensuráveis dessa pandemia nunca extinta a que se chama fome e malnutrição. A proporção da sua vitimologia é incomparavelmente superior à de qualquer vírus conhecido na Idade Moderna. Mas o mundo pós-moderno tem pouca disponibilidade para qualquer outra coisa que não o seu próprio umbigo.

A muito custo para conseguir fazer-se ouvir entre a logomaquia e o psitacismo que fazem do ruído do mundo um mudo mundo de ruídos inaudíveis, outro velho filósofo, Bruno Latour, vai convidando ao tipo de reflexões que poderíamos ter com algum interesse, no meio da pandemia biológica e da epidemia de imbecilidade que nos avassalam. Num texto de 30 de Março (https://aoc.media/opinion/2020/03/29/imaginer-les-gestes-barrieres-contre-le-retour-a-la-production-davant-crise/), Latour convidava a aproveitar “a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas”. Sob a forma de um pequeno inquérito, pretendia Latour que pensássemos profundamente em gestos de mudança capazes de reconfigurar ontologicamente a actualidade do humano. Com modéstia, pedia o seguinte: 

Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:

1a pergunta: Quais as atividades agora suspensas que gostaria
que não fossem retomadas?

2a pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades preferidas por si mais fáceis / pertinentes.
(Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1)

3a pergunta: Que medidas sugere para facilitar a transição para
outras atividades daqueles trabalhadores / empregados / agentes / empresários que não poderão continuar nas atividades cuja supressão sugere?

4a pergunta: Quais as atividades agora suspensas que gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?

5a pergunta: Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como pode ela tornar outras atividades por si preferidas mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajudar a combater aquelas que considerou como desfavoráveis.
(Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4)

6a pergunta: Que medidas sugere para ajudar os trabalhadores / empregados / agentes / empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver / criar estas atividades?

Sem outras lembranças que poderiam porventura ser úteis em dias de eleições, creio que pensar nas respostas a estas e a outras perguntas como estas pode ser a chave para desconfinar as ideias, para um des-pensar do mundo, para um abandono, enfim, do anestesiado torpor com que nos preparamos para aguardar a tragédia que nos tirará da presente ordem política, igualando-nos, com sorte, na proximidade ao sofrimento.