Homo Sum

Ensaio Alberto Pimenta

Foi no assento dum táxi que nos trazia, a mim, à minha bengala, e ao Viriato, vindos duma Adega cujo nome não revelo, não quero que se vulgarize mais – já basta gente vulgar como nós somos – a bengala não tanto, é ameríndia, mas a Adega é que não é mesmo nada vulgar, desde o tecto arqueado, o autoclismo do alto, de puxar por corrente, como noutro tempo nos eléctricos para dar o sinal de querer sair, mas aqui, siga: já saiu! e é o Sr. Manel de cartucho branco na cabeça, passando pela Dona Conceição que, na antevéspera de ser declarado o estado de emergência veio ao meu lugar pespegar-me um beijo como deve ser, e após isso foi cozinhar aquele sável que à mesa chegou pelas mãos da Elisabete, não a rainha da Inglaterra, que está longe e ocupada com as suas colecções, e do Ricardo, não o do coração de Leão, mas este, coração de homem! e fomos comendo o sável e bebendo o  do Telhado, ladrão de vinho! mais dia menos dia atacará de novo, e falámos, claro, da infantilidade – ou senilidade – do meu soneto, passe a hesitação, que o Viriato havia de declamar por mim, de gravata e tudo, caso me calhasse o prémio da minha vida! e, dizia eu, foi no assento dum táxi, foi na curva ao dobrar para a rua da Madalena – grande pecadora! – que me caiu na cabeça – talvez galantaria dela… – caiu aquele velho dizer de Terêncio: homo sum: humani nihil a me alienum puto!
E foi como a revelação de Pedro com o cantar do galo, ou como a de Arquimedes quando disse Heureka! esem querer dar-me tanta importância, foi como o Alípio quando viu a Felícia e disse: é esta! Eu também disse: é esta, e o Viriato achou bem! Mas o que em latim é tão claro, mil e oitocentos anos depois os estudantes da Picardia lá perceberam, depois de o reduzirem à singeleza do seu: de rebus quae geruntur! Terêncio até parece que tinha origem berbere, era como o Almada, nascido em São Tomé: homem cuja língua não vogava à superfície, e até o Doutor Júlio Dantas não entendia, não mergulhava, dava só umas braçadas à tona, latim não sei se era na sua zona, mas é tão claro, até no que o português diz “à letra”: sou homem: nada de humano me é alheio é tão claro, é tão óbvio que até o Presidente Trump entenderia e podia fazer seu, adoptar, então depois de saborear a Caridade de del Sarto, que em Moscovo lhe deram a conhecer com nuances; mas alindemos: sou homem: nada do que é humano estimo que me é alheio, e já um raio de dúvida: é ou … seja; então melhor, mais escorreito, talvez se calhar: sou homem: não me alheio de nada do que é humano; parece que sim, mas inverte o que Terêncio quer dizer; então, por exemplo: sou homem: não estou além de nada do que é humano; épassivamente modesto, e Terêncio não é dessas coisas: puto: “julgar”, é o caso, ou mesmo antes de lá chegar, “avaliar”, estimar a valia, é claro!…
Mas de que é que hoje estimamos a valia? Das grandes acções civilizadoras, de que primeiro Roma deu o exemplo: destruição de Veji para civilizar os etruscos; depois de dominada e civilizada a Grécia, um levantamento popular levou à necessária destruição de Corinto, que então aprendeu muito, por exemplo a fazer uvas passas para tempos de necessidade, muito alimentícias e, ainda por cima, gostosas a qualquer hora do dia ou da noite; mas Roma acabou por ser saqueada pelos Godos, e era escusado! Muito mais tarde houve as Cruzadas, muitos casos, até trouxeram de lá a Peste Negra, etc., etc., e, parece que não vem, mas vem a caso, quem é que efusivo traz uma coroa, que nem é feita de jóias como a do Sagrado Império Romano-Germânico, que tinha tantas como os dias do ano, a contenda era entre os que garantiam que o ano era bissexto, e os que não garantiam nada, porque a contagem em círculo enganava, e por causa disso até houve guerras, guerras que ficaram célebres porque um exército levava 365 cavalos e uma égua, e o outro levava só 365 éguas, era uma rebaldaria; não é nada disso, nem também a de espinhos, que alguns não conhecem, mas sempre houve, e penso que continua a haver, e para muitos com imensos espinhos, e, dado o orçamento de cada ano, eles são mais todos os anos, até há quem traga a testa toda inflamada, e a ciência trabalha, mas ainda não encontrou remédio! Estima-se que o problema vem da Lua, ou se calhar de Marte, onde os enviados de cá da Terra também aterraram, e trouxeram amostras para fazer testes! Os testes deram positivo; depois disso este mundo ficou aterrado e ainda mais aterrador; foram lá deixar por certo, como de costume, uma ponta do negócio, e agora é de lá que quase tudo se decide! A mim não me venham com histórias, já me basta a história, que parece ser a verdade, como tudo parece quando se vão baseando todos no que estimam ser as verdades uns dos outros: A disse, e B disse que A disse, e C disse que B disse que A disse, e D disse, e basta, mas a verdade é que esta verdade é só uma variação sobre uma fantasia, uma questão de estilo, não como é a afirmação de Terêncio: sou homem: não afasto de mim nada do que é humano! Mas não serve, tem mesmo, tem de ser latim! Claro, mas que é que no meio disto tudo é, e não é humano? Acho que os filósofos sabem, ou andam atrás de saber, e escrevem livros e livros a dizer isso mesmo, que andam atrás e estão quase a chegar, e aos sacerdotes é dado em dote saber mesmo tudo, e todos os que ganham bem também sabem, os outros sabem menos, ou só um pouco, ou até nada, e é só por isso!
É só por isso o quê? Que é tão difícil saber o que é, e o que não é humano! Para os que dirigem, e até se põem a combater, é claro que é pelo humano que o fazem; os outros não sabem bem, fazem coisas que são desumanas, até roubam para comer! E havia mesmo necessidade de comer aquilo? Um crime, tudo o que se chama crime, o que se chama desumano, o que se chama o mais desumano possível, disso tudo, de tudo isso não me ponho fora, não me excluo, não me excluo do que lhe fiz, e dos chamados abortos que ela fez, na época proibidos e portanto complicados, c de tudo o que se seguiu, e até ao fim se há-de seguir, embora já não pareça da minha responsabilidade, mas ela é desde que nasci, desde que recebi a ordem de nascer, a que todas as ordens que recebi se seguiram: ser homem, ser um herói, matar ou salvar, ou salvar para depois matar, ou matar para depois salvar, e depois, muito importante, as que ainda se seguem: lavar as mãos, lavar as mãos, e sempre lavar as mãos, lavar como Pilatos, lavar as mãos, sempre e todos sem excepção, lavar as mãos, especialmente depois de meter os dedos no nariz, lavar as mãos; lavar as mãos, e depois de pôr os dedos na pila, especialmente se ela esteve em contacto com algum cu, isto seja ele de homem ou de mulher, perdão, de mulher ou de homem, mas é indiferente, cu é cu, e mão é mão, é a única parte que lá deve ir, mas bem lavada! Não sei mais, é como Pilatos, é tudo, é tudo, e que mais? Cu? estou realmente como Terêncio, e digo agora a sério, e mais sério não podia ser: eu não enjeito nada do que é humano: homo sum!
E se a alguém ocorresse dizer do homem em poesia, como disse Nikos Kazantzakis:
“Que estranha/ máquina é o homem! Enchela de pão,/vinho, peixe, e rabanetes, e saem/
Soluços, risos e sonhos!” A questão é, parafraseando Heidegger, por que é que há poesia, em vez de a não haver? Fartome de perguntar isso; Terêncio claro que sabia, e decerto até diria: Terentii obticentia: de omni re scibili, certum est merdam esset.