Identidades

Ensaio João Freire

Lembro-me bem que, em livro que exaltava a coragem de sindicalistas americanos de há um século, o autor referia-se assim a um dos seus protagonistas, Frank Little: «half Indian, half white man, all IWW» (meio-índio, meio-branco, integralmente militante dos Industrial Workers of the World: Patrick Renshaw, The Wobblies, N. York, Anchor/Doubleday, 1968). Esta imagem de partição radical de uma personalidade, de alguém capaz de ser meio-isto, meio-aquilo, integralmente alguma coisa e decerto também inteiramente nada, nunca mais me abandonou.   

Li há pouco umas memórias privadas de alguém que fora colega de meu pai em tempos de escola. Terão sido amigos, se não íntimos, pelo menos colegas próximos atraídos pelas excelentes classificações escolares que obtinham e por algumas pândegas que em conjunto organizavam. Mas eram rivais na procura das melhores distinções académicas e ficaram distantes ao longo da vida, por percursos profissionais bem diferenciados. O seu relato correspondia às ideias que eu já tinha: que o meu pai era inteligente, trabalhador e se contava sempre entre os primeiros, além de ser emproado e vaidoso na sua farda de gola prussiana, exibindo aspecto de “militarão”, juntando a isso desembaraço e aptidão física para os desportos, além da surpreendente capacidade de, em exames académicos, ser capaz de grafar com destreza títulos maiúsculos em caracteres góticos! Mas causou-me alguma surpresa a referência a certos comportamentos do meu avô (republicano “dos quatro costados” com boas referências de carácter) de protecção àquele seu “filho dilecto”. Esta observação de um terceiro, tendo porém a interpretá-la antes pelo orgulho que “o bigodes” tinha nos excelentes resultados académicos do rapaz, ele que se fizera “a pulso”, sem inserção familiar que lhe garantisse “estudos”. Mas também talvez houvesse nesses ajuizamentos do memorialista alguma superioridade de classe social.

Em todo o caso, conheci bem a personalidade de meu pai, a despeito da sua morte precoce. E posso, sem favor, ajuizar que também ele se poderia “cindir” em mais de uma faceta: ser “militarão” em certas ocasiões; jovial e engraçado na intimidade ou com amigos próximos; professor implacável perante a ignorância dos alunos; reflectido e totalmente concentrado no seu estudo ou na leitura; condoído perante desgraças alheias próximas; sagaz na apreciação das situações; vaidoso face à mediania circundante, que só disfarçava porque a inteligência lho prevenia. Mas todas elas coexistiam – aparentemente sem conflito – num mesmo corpo, num mesmo temperamento, numa mesma personalidade. E se conflito existia, ele era capaz de o gerir sem o mostrar para fora.

Também eu me senti sempre cindido entre várias identidades, embora algumas só tivessem prevalecido por um tempo (ainda assim de largo prazo). “Militarão”, como meu pai, teria sido em adolescente (mas também ávido de aventuras, adorando a história de Beau Geste, inicialmente na versão em banda desenhada do Cavaleiro Andante, depois no romance de P. C. Wren); talvez ainda em jovem adulto, pois vários daqueles que tinha largado à saída dos estudos secundários e, anos mais tarde, souberam da minha deserção e rompimento com a carreira militar, reagiram assim: “Tu eras o último que eu podia pensar capaz de fazer isso!” e isso era perfeitamente compreensível. Português, sempre me senti um pouco, pelo enraizamento familiar, pelas vivências de veraneio campestre que eu sempre associava às “Pupilas” de Júlio Diniz, pelo conhecimento que ia adquirindo da história-pátria, relatada em episódios esparsos por meu pai, avô paterno e algum tio, e perseguida em todos os livros a que podia chegar. Mas veio a minha época de alargamento-de-horizontes, e todo esse “castelo” ruiu então fragorosamente perante um mundo moderno que agora se abria à minha frente, que me pedia para ser entendido (cientificamente, se possível) e me colocava desafios de actuação “sem paraquedas”, para lhe endireitar os defeitos e os vieses. Entender e agir, terá sido o lema não-formulado que conduziu a minha vida adulta.  

Nas convicções sociopolíticas, no mester professoral e formativo; nas afectividades indisfarçáveis face ao meio de origem e à carreira frustrada por vontade própria; na actividade lúdica por mim escolhida, treinada e organizada; no círculo familiar, de paixões e de amizades – não poucos foram os olhos exteriores que detectaram em mim contradições e incoerências insuperáveis. Assim pode ter sido, embora agora não tenha a quem pedir desculpas. Mas, no meu registo racionalista (ou porque para aí me guia a inteligência emocional que já alguém notou em mim), tratar-se-ia, antes, de uma “partição funcional” do meu ser pensante, que também é actuante e “sensante”. Parecido com o tal Franck Litte half Indian, half white man, all IWW. Porém, reconhecendo ao mesmo tempo que algo em nós existe de estrutural e mais rígido, que, apesar disso, se pode ir ligeiramente inclinando, perdendo vigor ou mesmo torcendo pela pressão do tempo secular em que existimos.

Com efeito, até as referências identitárias que nos parecem mais sólidas afinal estão em movimento, embora numa outra velocidade que o nosso tempo não alcança, se não com um esforço adicional de inteligência ou reflexão. Tomo como exemplo alegórico o sítio, as casas onde vivo: um terreno geologicamente calcário, em suave declive mas que adiante se precipita em encosta bem pronunciada. A pedra está escondida por um manto de terra barrenta e cascalho, mais ou menos profundo, mas que os cabouqueiros de há duas ou três gerações escavaram até encontrar o “fixe”, aí encastrando os alicerces das construções. Estes, em alvenaria de cal e areia de larga espessura, em pilares de cimento armado bem sapateados ou meras betonilhas, parecem sólidos e prontos para aguentar com as “superestruturas” que têm em cima mais de um século, à vontade. No entanto, de longe em longe, inquieto-me ao observar uma fresta “estrutural” que parece ter alargado, e olho às vezes para os marcos de cimento que delimitam os logradouros e as propriedades rústicas circundantes: de facto, vejo-os sempre ligeiramente inclinados no sentido da pendente – e receio que uma nadinha mais do que há uns anos. Sinal de que a cobertura de terra e cascalho, apesar do enraizamento de algumas árvores centenárias e de outras mais recentes, pode estar a escorregar em direcção ao vale. Ou seja: até a orografia e a geologia que a suporta podem estar menos inertes do que julgamos. E o olhar que o meu bisavô paterno terá lançado sobre estes mesmos espaços pode não ser exactamente o mesmo que eu observo. Que a paisagem muda (com a florestação, o povoamento disperso ou os aproveitamentos agrícolas), todos sabemos. Mas sempre pensámos que “por baixo” tudo se mantinha desde há séculos. E pur si muove

É uma metáfora, mas que me serve para a afirmação que aqui quis expressar: em cada ser humano, várias faces, uma estrutura vertical; mas que também ela acaba frequentemente por vergar um pouco, à imagem da maioria dos septuagenários. 

O mesmo poderia dizer sobre o contraste entre, em cada um de nós, as rotinas, por um lado, e a criação, por outro. Quem diz rotinas, diz instituições, organizações formalizadas, regras e leis; e quem diz criação (ou invenção, e também a resolução de problemas, que são questões da mesma ordem), diz inventiva, descoberta, liderança, associação de ideias e novas versões ou elaborações sobre algo ou obra já existente; quem diz isso, diz: novo. Mas há objectos concretos que integram em si ambas as vertentes: o livro, por exemplo. É rotina para quem os manipula na estante, os imprime, vende, cataloga; é (geralmente) re-criação para quem o lê, e decerto processo criativo original para quem o escreve.

Pessoalmente, sempre valorizei muito um e outro aspecto. Em jovem, mais apostado na reprodução exacta, isto é, nas regras e nas rotinas; mas sempre inquieto, à procura de algo de novo. Mais tarde, sobretudo na missão de professor (mas também em diversos domínios da vida social), enfatizando tanto as vantagens e benefícios da organização (os elogios que prodigalizava ao “taylorismo” espantavam às vezes os meus alunos) como a indispensável centelha crítica que deveria iluminar os nossos processos de investigação científica. E, na esfera do “meu anarquismo”, muitas vezes surpreendi amigos com a sistemática que empregava em tantas actividades, ao mesmo tempo que exasperava alguns com a mania de não me contentar em propalar o que certos pensadores (por mim admirados) haviam escrito há um século atrás e procurar alguns caminhos novos, por conta e risco próprios. Hoje, no lugar das rotinas, balizo-me nos sinais conspícuos da minha casa (como um cego se movimenta em espaço conhecido) e em recordações avulsas da memória; e é na escrita, no novo micro-“projecto” que teima em surgir de madrugada, e na procura da palavra adequada à frase que estou construindo (e que só surge quando ela entende, fora da minha vontade), que encontro o espaço criativo que, em boa medida, me dá alento para viver.

Leio ou observo fragmentos que testemunham tempos muito antigos, e imagino, subindo degrau a degrau na escada da minha desconhecida genealogia, os antepassados mouros, celtas, romanos e certamente hebraicos que me antecederam e de cujos genomas alguma coisa terá chegado até mim e hoje me condiciona. O mesmo para a admirável companheira com quem voluntariamente partilhei já cinquenta anos das nossas vidas. De “judeu”, terei herdado a cólera que me assalta em momentos onde me choco com a injustiça flagrante, talvez também a tenacidade em perseguir objectivos ou o raciocínio experimental para escolher o menos mau dos caminhos que lá me conduzam; mas não devo ter perdido o sentimento humano de piedade perante as dores alheias (que as nossas religiões depois trabalharam e organizaram ao seu modo, e me inculcaram em criança). De “cristã”, ela terá recebido a doçura e a atenção desmedida que oferece aos que a amam, enquanto do “hebreu” lhe restam notórios traços de autonomia, orgulho e dignidade própria. Este dualismo temperamental, que pode ligar duradouramente algumas pessoas – na convivência, no afecto ou no amor –, é talvez uma síntese feliz da “identidade judaico-cristã”, por vezes tão amaldiçoada, mas à qual eu não posso deixar de acrescentar a noção ética de distinção entre o bem e o mal, não como regras de submissão prescritas nas Tábuas das Bem-Aventuranças e dos Pecados, mas antes num sentido próximo do imperativo categórico de Kant. É certo que não tenho amigos ou conhecidos de cultura ou religião islâmica, budista ou de outra qualquer espiritualidade oriental – pois quase todos são racionalistas, agnósticos, ateus ou indiferentes. Mas, dentro dos meus valores, creio que respeitarei todos aqueles outros e os apreciarei nas suas diferenças – na medida do possível e em que seja comummente aceitável. Suponho também que adiro plenamente aos princípios da moral confuciana da igual reciprocidade entre os seres. 

E poderia ainda referir o impacto que em mim tiveram as ideias anarquistas: menos a justeza das suas convicções políticas (o anti-estatismo, a paixão de liberdade, etc., bem como o eco minoritário que o seu movimento suscitou no âmbito da “questão social”) – que tendo a interpretar como “produtos de época”, de um determinado tempo histórico que já lá vai –; mas sobretudo o exemplo pessoal de muitos dos seus propagandistas (tendo podido ainda privar com alguns dos que chegaram à minha geração). Entre os principais, revejo-me na ousadia de pensar o impossível e de tentar pô-lo em prática das maneiras mais arrojadas de um Bákunine; na ponderada apreciação científica do mundo moderno e na sua generosa contribuição para a germinação de uma comunidade de indivíduos verdadeiramente emancipados de um Kropótkine (que alguém definiu quase-sociologicamente sob a epígrafe: “La sociedad fue primero”); no génio literário e despreendimento pessoal de um Tolstoi; e na capacidade de reconhecer alguns erros e insuficiências daquilo que toda a vida praticara e defendera, de um Malatesta. Todos marcados pelo romantismo daquelas épocas, e homens que prescindiram dos seus privilégios de nascimento para lutarem por um mundo melhor para os mais desprotegidos e com isso pagaram o tributo mais pesado determinado pelos poderosos. Tudo isto se passa na esfera mental da minha consciência, bem sabendo que sobre ela agem os constrangimentos e influências sociais e psico-relacionais, e que ainda mais atrás se situam as heranças genéticas que acompanham cada um de nós desde a nascença.  Falei de mim e das minhas raízes (sanguíneas, térreas e emocionais-simbólicas) pela facilidade de dispor à mão do material de prova – ou melhor, de ensaio (do laboratório que é a vida social). Outros modelos existirão, de que certos cientistas saberão falar. E alguns, de diferentes disciplinas, propor-se-ão realizar contagens extensivas para detectar padrões de similitudes, realizar inferências, propor leituras e interpretações gerais. É o seu domínio do saber, cada vez mais complexo e fragmentado. E sempre sobre a benéfica ameaça de serem contraditados por novos avanços comprovados, hoje provindo talvez sobretudo dos domínios das neurociências. Mas pouco acrescentam à(s) identidade(s) de cada um de nós, a não ser aquilo com que nos possamos iluminar para melhor nos compreendermos a nós-próprios, mais à nossa relação com os outros e com o mundo em que vivemos.