Incubus

Ensaio Gomes/Thermann

Incubus é um projecto de escrita online do duo de autores Gomes/Thermann, realizado durante os meses de Abril e Maio e publicado na colectânea pandémica Triakontameron (www.triakontameron.de). Segue-se uma tradução (algo livre) do texto introdutório, originalmente publicado em alemão, além do link para o projecto propriamente dito.

Incubus. O texto pandémico

Do ano de 1962 data a seguinte frase de William Burroughs: “Language is a virus.” Isto soou bem na altura e continua a soar, além de se prestar lindamente para a música pop, como Laurie Anderson demonstrou. Ainda assim, quem se detenha um pouco mais na leitura, depressa se aperceberá de que, bem vistas as coisas, a frase não bate certo. Na verdade, seria preciso inverter os termos: “A virus is language.”

Nos dias que correm, assistimos àquilo que a eloquência viral é capaz de inscrever no mundo. Com o poderio de ácidos nucleicos não há literatura que consiga competir. O fenómeno que mantém o mundo em suspenso dificilmente se deixa capturar pela linguagem verbal, muito menos por narrativas lineares. Para o abordar, requerem-se números, diagramas, curvas exponenciais. O que escapa à narrativa tem de ser disposto no espaço. Apenas o diagrama parece prevalecer nestes tempos. Perante esta supremacia do dispositivo geométrico, a literatura vê-se obrigada a adaptar-se e, na gíria do presente, “adaptar-se” equivale a “formar anticorpos”. A partir daqui, o raciocínio é simples: Para formar anticorpos, é necessário vacinar-se ou infectar-se. Como ainda é cedo para vacinações, a única via que nos resta é a da infecção.

O texto pandémico-viral ilustra, celebra, demoniza, eleva a infecção a princípio literário. Por outras palavras: Aquilo que nos propomos é imitar a forma como um vírus se propaga. Para tal, assentamos a escrita no princípio de contágio: enquanto processo formal (um organismo infecta o(s) organismo(s) seguinte(s)); enquanto processo semiótico (um significado dissemina-se no seguinte); enquanto processo de estética de produção (o texto de um infecta o texto do outro); enquanto reflexo do mundo globalizado (os textos reflectem a interdependência económica e social do mundo).

Quando Burroughs, na década de 1960, se pôs a escrever sobre vírus e linguagem, o vírus mais proeminente do século XX — hoje em dia estas coisas sabem-se — já se encontrava em circulação. Até se lhe ter atribuído o acrónimo VIH, no início da década de 1980, o vírus continuou a sua propagação invisível, imperceptível, no limiar da linguagem. Esta latência viral parece-nos digna de imitação. No nosso laboratório literário, criado um pouco à pressa e algo precariamente, há que confessar — na realidade precisaríamos de dois supercomputadores e várias centenas de colaboradores —, trabalhamos actualmente na modelação de uma ucronia pré-pandémica, uma versão do presente em que (pelo menos em aparência) não existe um vírus chamado SARS-CoV-2 e a pandemia é uma possibilidade remota. Um fantasma. Um pesadelo.

Não dispondo de meios mais sofisticados, recorremos a uma ferramenta que actualmente se utiliza um pouco por todo o mundo para o ensino online, reuniões online, negócios online. Adaptámo-la às nossas necessidades, transformando-a numa centrifugadora viral (ou num laboratório de vacinação, dependendo do ponto de vista). Nesta primeira fase da modelação, apenas se vislumbra um rudimento. Um surto na sua fase inicial. Ainda assim, a partir do diagrama existente não será difícil imaginar uma propagação futura. Basta projectar a curva e qualquer pessoa sabe hoje projectar curvas. Ao se fazer a projecção, obter-se-á uma imagem fiel do poder viral. O output literário final é essa curva projectada.

O laboratório encontra-se instalado aqui: https://miro.com/app/board/o9J_krme_6o=/

Nota biográfica

Gomes/Thermann é uma dupla de escritores que se dedica à produção literária há mais de uma década. Após a conclusão do doutoramento na Universidade de Bona, mudaram-se para Berlim em 2007, onde foram membros fundadores do colectivo Altes Finanzamt (Prémio do Senado de Berlim para espaços culturais independentes, 2014). Em Berlim estiveram a cargo de um projecto de hiperburocratização literária (Poesiebüro), organizaram duelos e maratonas de máquinas de escrever e estiveram envolvidos na construção de diversos dispositivos mecânico-literários. Com o apoio duma bolsa de criação literária do Senado de Berlim, escreveram em conjunto Berge, Quallen (Montanhas, Medusas), romance publicado pela editora Diaphanes em 2016. Actualmente Gomes/Thermann encontram-se ao serviço do DAAD (uma espécie de congénere alemã do Instituto Camões): Mário Gomes é docente na Universidade de Concepción (Chile), Jochen Thermann na ENS em Lyon. Na calha estão mais dois romances escritos em conjunto e à distância, a serem publicados em breve.