Tratado da lonjura

Ensaio Antonio Prete (traduzido por Andrea Ragusa e Sofia Andrade)

Contar a lonjura é dar presença ao que é subtraído à presença.

Pensar a lonjura é dar uma configuração e um ritmo ao invisível, uma língua ao inatingível. Acolher o extremo. Esse azar é a pulsão própria de todas as artes.

A lonjura é o longe observado no seu movimento em direcção à representação, no seu tornar-se figura. O longe observado no tempo e no espaço do seu acampar.

Lontananza (lonjura), na língua italiana, é uma palavra próxima, não apenas pela forma lexical, de ricordanza (recordação): Leopardi, com ricordanza, designava o movimento próprio do recordar, isto é, o ascender de uma «immagine antica» – uma imagem perdida, fechada no esquecimento – a uma nova presença, a um novo tempo. O tempo da poesia.

Também a lonjura, como a recordação, diz o movimento em direcção ao novo tempo: o longe faz-se linha, de indistinto que era. Faz-se luz, de sombrio flutuar  na escuridão. E faz-se forma, de ilimitado informe que era.

Este movimento dá-se na linguagem, é obra da linguagem. Todas as artes tomam parte nele. É o ritmo deste movimento que permite à lonjura não abolir-se como lonjura, de permanecer aberta como lonjura, disposta a deixar-se atravessar nas suas ilimitadas regiões. É essa relação com a linguagem que impede à lonjura de se contrair na superfície ilusória de uma proximidade que é toda ela artificial, instantânea, provisória.

É neste lugar que se coloca a ideia que por longo tempo me acompanhou, antes de se estender no tempo do livro: descrever algumas figuras da lonjura, tal como o saber da literatura as acolheu e as interrogou. Um propósito – uma busca – que, antes de aproar à escrita deste livro, teve um seu tempo, por assim dizer, didáctico: durante uma década, na minha Universidade, todos os anos dei um curso sobre uma figura da lonjura.

E ia reparando, à medida que o tempo passava, que me encontrava no coração – na urgência – de uma questão totalmente contemporânea. Porque hoje a lonjura já não está longe. É próxima, transitável, até doméstica. Está nas casas, no ecrã do computador, no display dos telemóveis, no som que provém dos auscultadores. A técnica do nosso tempo, a técnica hoje triunfante, é de facto a técnica da lonjura. O advérbio grego tēle – longe – que aparece logo nos primeiros poetas gregos compõe os elementos e os instrumentos da técnica contemporânea. Telefone, televisão, telemática. Tudo o que é longe – ilhas, desertos, cidades, acontecimentos, paisagens, costumes de povos ignotos – vem hoje em direcção a nós, queimando o tempo e o espaço da lonjura. Faz-se contemporâneo. Faz-se superfície, ecrã, som. Torna-se um aqui e agora oferecido ao olhar, a audição. 

A língua grega declinava a lonjura dando figura, movimento, gesto à representação do que estava longe. De modo que o advérbio tēle, ao juntar-se a outras palavras, ia compor campos semânticos diferentes, que podiam designar, conforme o caso, a profundeza do mar, a amplidão da fama e do renome, o errar em longínquas regiões, o vislumbrar de um objecto ao longe, os povos longínquos, a amante longínqua, e por aí fora. Para nós, na actualidade, aquele advérbio grego anuncia palavras que indicam prevalentemente formas da técnica.

No mundo da telecomunicação a lonjura é como que recolhida num ponto e contraída, ao passo que se impõem a rapidez, a imediação, a simultaneidade. O universo da «rede» acolhe a lonjura no vislumbre instantâneo de uma imagem, de um som, de uma escrita. 

É a nossa época. Com a riqueza e a ambiguidade das suas formas, dos seus modos de representação. Não se trata de opor à técnica da lonjura a arte da lonjura. Trata-se apenas de mostrar que o papel da linguagem – ainda na linguagem que é própria da técnica – é o de não reduzir a espessura da lonjura, a riqueza das suas variantes, a profundeza das suas figuras, os territórios incomensuráveis do seu espaço. 

Não suprimir a lonjura: um propósito à altura da nossa época. E a narração, a poesia, as artes mantêm aberto o espaço da lonjura, porque representam a lonjura como lonjura. Porque exigem a colaboração imaginativa e meditativa de quem lê, de quem observa.

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***

No adeus, a separação ainda não aconteceu e todavia já está presente com a sua sombra. A lonjura não está delineada, e todavia já se debruça com a sua espinha.

O tempo vivido está todo encolhido no limiar do adeus, mas, no instante em que nos apercebemos disso, aquele tempo parece ameaçado e como que esvaziado pelo tempo ainda por vir. O qual já está lá, também ele no limiar, como tempo da privação, tempo do regresso impossível.

O adeus é a experiência da lonjura antes de a lonjura realmente existir. Experiência do desaparecimento possível na presença daquilo que o desaparecimento dai a pouco irá tornar seu. Aqueles olhos, com a sua luz, aquela faixa de céu acima do telhado, aquela copa da arvóre que roça a cancela chamam para si, no seu estar ali, em frente daquela ou daquele que está prestes a partir, um pouco mais de presença, definem-se, ao aparecerem, com uma energia insuspeitável, entram no horizonte de uma visibilidade plena e até jubilosa. Mas, no mesmo instante, são tocados pela asa cinzenta do já acontecido. Na sua acrescida presença treme, já anunciada, a lembrança, com seus contornos esfumados, com a evanescência que a torna demasiado parecida com a imagem flutuante no espelho de água.

No adeus, o antes e o depois fixam um encontro, convergem no mesmo instante, cada qual carregado com a sua própria pena. Mas é como se a conjunção de antes e depois – um em direcção à consumpção, o outro em direcção ao seu desdobrar – gerasse, por um instante, um novo tempo. O tempo de uma trégua: a despedida do que já foi e a abertura do desconhecido estão suspensos nessa conjunção de antes e depois. Por isso o beijo é a figura mais própria do adeus. A demora de dois enamorados no beijo é a tentativa de prolongar esse tempo suspenso. Conjunção de antes e depois, conjunção de lábios. O abraço no limiar da partida: um desafio ao tempo da separação. Figuração – alusiva, utópica – da proximidade perpétua, do encontro entre corpos que anula o espaço, o vazio, da distância. E anulando o espaço, anula o tempo da lonjura. Mais se abraça, mais se quer impedir o insinuar-se do vazio: vazio de espaço, de tempo. É a ameaça daquele vazio que no abraço se quer esconjurar.

O limiar de um apartamento, o patamar de um prédio, a plataforma ao longo da qual correm as linhas do comboio, o desembarcadouro de um cais, o amplo e neutro corredor cheio de trânsitos que tem ao fundo a linha dos check-in ou as passagens no detector de metais são lugares frequentes de adeus: cortinas de um teatro interior que domina a cena, e até apaga a cena, por causa da luta, em acto a cada partida, entre o que já foi e o que ainda não é. Que é também, por vezes, luta entre o desejo de ficar e o de partir. E há, em cada adeus, o enfrentar – ainda em forma de presságio, de antecipação – do tempo obscuro que a separação poderá desvelar: por isso, nas línguas românicas a palavra que designa essa separação inclui em si a palavra deusaddioadieuadiosadeus… Proteção invocada e abandono ao imperscrutável. Como se um enredo do destino tivesse de sobrevir. Para guardar o tempo consumido e o tempo ainda por vir, mas também os rostos e as coisas abandonadas e o visível que se irá desdobrar algures.

Excertos dos trechos “Premessa” e “L’addio”, retirados de Trattato della lontananza (ed. Bollati Boringhieri), a publicar pela abysmo.