Seis poemas de W.S. Merwin

Poesia Jorge Sousa Braga (tradução)

Para a próxima extinção

Baleia cinzenta
agora que te enviamos para O Fim
esse grande deus
diz-lhe
que nós que te perseguimos inventamos o perdão
mas não perdoamos nada
Escrevo como se pudesses entender
e podia dizê-lo
devemos fingir sempre alguma coisa
diante dos que agonizam
Quando tiveres desaparecido dos mares acenando com a cauda
vazio de ti
diz-lhe que nós fomos feitos
noutro dia
A perplexidade diminuirá como um eco
enrolando-se ao longo das tuas montanhas interiores
desconhecidas de nós
e encontrará a saída
deixando para trás o seu futuro
morto
e o nosso
Quando nunca mais puderes ver
as pequenas baleias habituando-se à luz
considera aquilo que encontrarás no negro jardim
e no seu tribunal
as morsas os araus gigantes os gorilas
os insubstituíveis e incontáveis anfitriões ordenando com antecedência como estrelas
os nossos sacrifícios
Junta a tua palavra à deles
diz-lhe
que nós é que somos os responsáveis


Obrigado

Escuta
enquanto a noite cai dizemos obrigado
parados nas pontes curvados sobre as grades de proteção
nos terraços de vidro
com a boca cheia de comida a olhar para o céu
dizemos obrigado
de pé junto à água agradecemos
de pé à janela olhando lá para fora
na nossa direção
de regresso de uma série de hospitais de regresso de um assalto
depois dos funerais dizemos obrigado
depois das notícias dos mortos
quer os conhecêssemos ou não dizemos obrigado
pelo telefone dizemos obrigado
nos vãos das portas e nos bancos de trás dos automóveis e nos elevadores
com a memória das guerras e a polícia à porta
e as pancadas nas escadas dizemos obrigado
nos bancos dizemos obrigado
nos rostos dos funcionários e dos ricos
e de todos aqueles que nunca mudarão
continuamos a dizer obrigado obrigado
enquanto os animais morrem à nossa volta
os sentimentos perdidos dizemos obrigado
enquanto as florestas desaparecem com mais rapidez que os minutos
dizemos obrigado
enquanto as palavras caem como células do cérebro
enquanto as cidades crescem sobre nós
cada vez mais rápido dizemos obrigado 
embora ninguém escute dizemos obrigado
dizemos obrigado e acenamos
no escuro 


Asas

Entre os meus amigos aqui há um velho cujo nome 
tem a ver com a primeira luz antes do amanhecer 
ele ensina a voar quer dizer ele 
é capaz de voar sozinho e ensinou 
os outros a voar e voar para eles é o seu 
único tesouro mas a mim não me ensinou 
embora eu sonhe em voar e voe em sonhos 
mas quando o vejo ele fala-me de plantas 
que guardou para mim e de onde elas vieram 
uma nova de cada vez elas têm folhas como asas 
com muitas asas, algumas com revoadas de asas 
mas elas nunca voam diz ele ou quase 
nunca voam há algumas que sabem voar e voam 
mas voar é o seu único tesouro 
ele diz que se me ensinasse agora a voar 
seria um tesouro entre outros 
apenas um entre outros é o que ele diz 
e ele vai esperar diz-me e fala 
dos seus velhos amigos e dos seus encontros 
regulares num lugar onde lutaram 
numa batalha há muito tempo quando eram jovens 
e ganharam e a antiga floresta foi 
destruída enquanto lutavam mas quando regressaram 
tinha crescido de novo para cumprimentá-los como se 
nada tivesse acontecido e enquanto 
estão lá a floresta espalha as suas asas sobre eles 


No aniversário da minha morte

Todo os anos, sem me dar conta, passa o dia
em que os últimos incêndios se despedem
e o silêncio se instala
Viajante incansável
como os raios de luz de uma estrela já extinta
então já não
estarei nesta vida vestindo uma roupa estranha
Surpreendido na terra
pelo amor de uma mulher
e a audácia dos homens
escrevo hoje depois de três dias de chuva
e ouço a carriça a cantar e a tempestade cessar
e curvo-me sem saber perante o quê


Berryman

Vou-te contar o que ele me disse
nos anos a seguir à guerra
a que então chamamos
Segunda Guerra Mundial

não percas a tua arrogância ainda, disse ele
podes fazer isso quando fores mais velho
perdê-la muito cedo pode significar
apenas substituí-la pela vaidade

só uma vez sugeriu
alterar a ordem 
das palavras num verso
porquê dizer uma coisa duas vezes

sugeriu que eu invocasse a musa
ajoelha-te e reza
ali no canto e era isso mesmo
que ele queria dizer 

foi nos dias antes da barba
e da bebida, mas ele era profundo
tinha marés próprias através das quais navegava
o queixo de lado e a cabeça inclinada como um saveiro

era velho para a idade que tinha
muito mais velho do que eu, estava na casa dos trinta
estalava o nariz com um sotaque
que acho eu apanhara em Inglaterra

quanto à publicação, aconselhou-me
a forrar a minha parede com os cartões de rejeição
os lábios e os ossos dos seus longos dedos tremiam
com a veemência dos seus pontos de vista sobre a poesia

ele disse que a grande presença
que permitia tudo e transmutava tudo
na poesia era a paixão
a paixão era o génio e ele elogiava o movimento e a invenção

Eu mal começara a ler
e perguntei como se podia ter a certeza
de que aquilo que se escreve é realmente
bom e ele disse tu não podes

não podes nunca ter a certeza
vais morrer sem saber se
alguma coisa que escreveste é boa
se queres ter a certeza não escrevas


Lugar

No último dia do mundo
gostaria de plantar uma árvore
não para que
dê frutos
a árvore que carrega os frutos
não é a mesma que foi plantada
Quero a árvore que fica de pé
na terra pela primeira vez
com o sol 
a desaparecer
e a água
tocando as suas raízes
na terra cheia de mortos
e as nuvens que passam
uma a uma
sobre as suas folhas

W.S. Merwin, USA, 1927- 2019