Western ao anoitecer

Poesia José Anjos

vou abrir um pouco a persiana
para deixar sair alguma da luz artificial
o zorba está misterioso
muito tranquilo pelos cantos
às vezes pede o costumado colo
outras dá as cabeçadas que encomendou ao cabresto
parece saber que algo chegou ao fim
ou então que vem aí borrasca
ou tem sono apenas, como eu
tenho dormido mal e pouco
talvez ele não consiga surfar tão bem a inquietude
do meu corpo de noite
dói-me tudo
a mama esquerda especialmente
como se fosse nascer uma flor de dentro
do meu peito
é um processo conturbado
como se estivessem a mexer aqui
ou estivesse a ser operado noutra dimensão
mas sentisse nesta o restolhar das raízes
na carne e nos ossos,
a penhorar o coração e os pulmões
sinto os escopros a fazer e desfazer as texturas do músculo
a admoestar o osso
a raspar ferrugem, quem sabe as saudades
dos abortados pelo coração
podem estar a esculpir algo
um novo buraco talvez
para aí caber mais qualquer coisa que agora não passa
ar, por exemplo
mais chocolate, algum grão de vidro
que virou diamante debaixo desta pressão toda
estou a ser minado
por uma pepita, tenho garimpeiros junto
ao lado esquerdo do peito
que é o que guarda o coração
podem querer roubar ouro, mas nem latão vão encontrar
ou então são chineses e querem consertar as minhas fissuras
e defeitos com pasta de ouro, como é tradição fazerem
se calhar é tudo isto e estão todos à bulha
tenho um western no peito
alguém disparou
podes chamar o cirurgião?
ainda bem que cortei as unhas ao zorba
ele quer ser sempre o assistente
é útil como um braço
o meu já não me pertence
se calhar são piratas
com ganchos nos cotos e braços de pau
a coçar as algibeiras
à procura do ouro que os cabrões dos chineses
me injectaram no crime
shiuuuuuuu
ninguém sabe
se me aproximo do forno derreto
e não consigo abrir a porta ao senhor adérito
é o meu parceiro de contrabando
traz o ouro dentro das batatas e a plasticina nas cebolas
vou matar a sede
acho que me sobrou um sumo
lembra-te: destruir uma coisa jamais terá como efeito
rejeitar a sua existência
é uma impossibilidade linear construtiva
a descontrução permite recriar o começo, ergo uma nova
ou outra existência
destruir é apenas um fim sem outros ramais
com toneladas de portagens para pagar a posteriori
e fui bom com a minha mãe hoje
isto não é um reminder
é uma expressão de delírio
por exemplo: estava a pensar na palhinha que vem com o sumo
quis destruí-la
porque sou contra as palhinhas
ainda assim, disso não resultaria a recusa da sua existência
e usei-a
porque no fundo e para esse fito o seu uso é obsoleto
acessoriamente permitiu-me beber o meu sumo
com mais conforto e gozo, embora com veemente repúdio
pela sua existência
percebes?
nunca saberei ser um desconstrutor de palhinhas
e isso deixa-me assustado
porque tira o sentido ao gesto – fazer ou não fazer
é indeterminístico
que belo sumo, ao menos isso
sabe bem
na verdade somos nós as palhinhas no sumo
a vida corre por nós e abrimos a sede ao seu gozo
mas no fim ficamos hirtos à espera de outro vazio
esclarecimento: não somos palhinhas como o meu primeiro canário
que era amarelo
e por isso chamava-se palhinhas
gostava muito dele
morreu feliz
teve uma vida longa
nunca bebeu sumo ainda assim
nem ninguém bebeu sumo por ele
isso seria nojento e cruel
podes achar que estou estranho
não estou
estou normal
mas de roupão
é um pequeno conforto que faz toda a diferença
traz dignidade ao conforto
torna-o sólido
a solidez da solidão está no conforto do roupão
percebes?
sinto uma maior relação de propriedade com o espaço
quando estou de roupão
o zorba presta vassalagem ao roupão e eu a ele
estamos ligados
dois comboios atrelados sem chocar
imagina os carris de lã ou poliéster
muito bem desenhados à volta dos comboios
acompanhando todos os seus movimentos
é essa a relação que um roupão abre no espaço em que te movimentas
a vida tem uma estação de serviço que é muito mais do que isso, e não é cara
é uma estação de conforto
acho que me entendes
sei que sim, conheço os teus pijamas
sei como pensas os gestos e eles a ti
somos pontífices supremos com roupões
de reinos inter-galácticos
altezas a olhar o chão
para o saborear
como um sumo
sem o cruel dilema das palhinhas
conheço até os teus piores pijamas
mas os mais confortáveis
ambos sabemos que vou adormecer aqui
este foi o melhor momento das nossas noites
quiçá do dia inteiro
não estou bem
mas esta noite voarei certamente
explicação do homem cheio de pressa:

(pedimos desculpa pelo incómodo – este conteúdo já não está disponível)