Capaz de Matar

Prosa poética Louise Dupré, traduzida por Valério Romão

És capaz de matar, mesmo um ser que amas; por vezes decidimos matar o que amamos. Infiltrou-se pouco a pouco na tua cabeça, ele berrava, o teu gato, ele não parava de berrar, e tu não o quiseste ouvir mais. Já não aguentavas, como aquela mãe que já não aguentava ouvir o choro do filho. Bastou encostar uma almofada àquela pequena boca, acabou. A criança cala-se. Tu, tu marcaste um número de telefone, atendeu-te uma voz feminina e tu respondeste-lhe Sim. Mas não te ocorrerá escrever Eu sou culpada. Coincidirias então com o teu remorso. 

Berros de crianças esfomeadas, berros de mulheres durante o parto, berros dos prisioneiros que torturamos, berros silenciosos de esposas lapidadas, de raparigas e de rapazes que violamos, berros dos violadores, dos homicidas, os últimos berros dos assassinados que ninguém ouve, berros dos deportados, dos bombardeados, dos cordeiros que degolamos, berros dos escravos nos porões, das bruxas nas fogueiras, dos guerreiros, dos moribundos no fim do sofrimento, berros de chamamento, de revolta, de desespero, berros do teu gato. Berros aos quais nunca respondeste.

Ouves os berros retidos nas entranhas da terra de cada vez que pousas os pés no chão, ouvi-los-ias mesmo que matasses todos os seres vivos. Pedes de cada vez que te libertem do mal, mas quem te poderia estender a mão, que palavra te poderia salvar dessa angústia? Pertences a uma linhagem tão antiga que esta não se recorda do continente em que nasceu, peixes, pássaros, carnívoros, mamíferos que pouco a pouco se vestiram para aprender a caminhar, povo de caçadores, de pilhantes e de criminosos. Tens nas mãos o odor milenar do fogo e do sangue. 

Vens de uma infância na qual os poetas acabavam nos asilos, como os órfãos, uma infância de cordeiros loiros balindo sobre carros alegóricos, paradas sem combates, lembranças entaladas no catecismo, imagens mártires que subiam até às nuvens. Queriam-te virgem, missão, África de joelhos florescendo as igrejas, ensinavam-te o solfejo do sacrifício e tu cantavas, desafinadamente, a voz presa como calhaus na boca de afogados. Esquecias-te da tua pele animal, dos pêlos que te invadiam, braços, pernas, púbis, ervas daninhas que arrancavas uma a uma, era necessário fazer de anjo e sem talento fazias de anjo. Começaste a escrever, a mão assombrada. Não habitas sozinha o teu sofrimento e sabe-lo. 

A mão assombrada, tornamo-nos numa história demasiado pesada para uma mulher, uma barbárie à flor da pele. Conheceste predadores de todas as épocas e todas as épocas espreitam cada um dos teus gestos. És uma poeta de unhas negras e assim o serás sempre. Já não tens idade para concursos de beleza, idade para os versos erigidos em coroa para a glória dos rostos, o teu espelho devolve-te agora as rugas da tua mãe. Envelhecer não te traz qualquer serenidade, qualquer sageza, apenas a devastação de um deserto no qual as tuas palavras nada podem pelos reféns desfeitos a golpes de sabre como monumentos milenares. E, ainda assim, sonhas com poemas que despertam a ternura dos deuses, mesmo que tenhas de lhes chamar preces ou orações. És a tua própria contradição. 

Excerto de La main hantée (ed. Editions du Noroit)