Fracturas

Aforismos Cioran traduzido por Ricardo Gil Soeiro

Quando saímos do círculo de erros e de ilusões no interior do qual se desenrolam os actos, tomar posição é uma quase-impossibilidade. É necessário um mínimo de tolice para tudo, para afirmar e até mesmo para negar.

Para entrever o essencial, não é necessário exercer nenhum ofício. Ficar deitado todo o dia deitado e gemer…

Tudo aquilo que me põe em desacordo com o mundo é-me consubstancial. Aprendi muito pouco através da experiência. As minhas decepções sempre me precederam.

Há um inegável prazer em saber que tudo aquilo que fazemos não tem qualquer base real, que é indiferente consumar um acto ou não o levar a cabo. Não é menos verdade que, nas nossas acções quotidianas, lidamos com a Vacuidade, ou seja, de forma alternada e talvez ao mesmo tempo, tomamos esse mundo por real e irreal. Misturamos verdades puras e verdades sórdidas e esta mistura, vergonha para o pensador, constitui a vingança daquele que vive.

Não são os males violentos que nos marcam, mas sim os males surdos, insistentes, toleráveis, que fazem parte do nosso rame-rame quotidiano e que nos minam do mesmo modo que nos mina conscientemente o Tempo.

Ultrapassado o quarto de hora, já não conseguimos assistir sem impaciência ao desespero de outrem.

A amizade só tem interesse e profundidade quando somos jovens. Com a idade, torna-se evidente que o que mais tememos é que os nossos amigos nos sobrevivam.

Podemos imaginar tudo, predizer tudo, até onde nos conseguirmos afundar.

Aquilo que ainda me liga as coisas é uma sede herdada de antepassados que levaram a curiosidade até à ignomínia.

Como nos devíamos ter detestado na obscuridade e na pestilência das cavernas! Compreendo perfeitamente que os pintores de então tenham querido imortalizar, não o rosto dos seus semelhantes, mas o dos animais.

“Tendo renunciado à santidade…” – Só de pensar que fui capaz de proferir uma tal enormidade! Devo ter uma desculpa e espero poder encontrá-la.

Exceptuando a música, tudo é falsidade, até a solidão, até o êxtase. Ela é justamente o que estes são, mas melhorados.

Como a idade simplifica tudo! Na biblioteca peço quatro livros: dois com letras demasiado pequenas, excluo-os sem pensar muito; o terceiro é demasiado…sério, parece-me ilegível. Trago o quarto sem convicção…

Podemos estar orgulhosos do que fizemos, mas devemos estar muito mais orgulhosos do que não fizemos. Este orgulho está ainda por inventar.

Depois de uma tarde na sua companhia, estávamos extenuados, uma vez que a necessidade de nos controlarmos, de evitar a mínima alusão susceptível de ferir (e tudo o feria) nos deixava por fim sem forças, descontentes com ele e connosco. Acabando-se por lhe dar razão por causa de escrúpulos levados até à baixeza, desprezávamo-nos por não termos explodido, em vez de se ter imposto um exercício de delicadeza profundamente extenuante.

Nunca se diz de um cão nem de uma ratazana que eles são mortais. Com que direito se arroga o homem de um tal privilégio? Afinal de contas, a morte não foi um achado seu e é um sinal de fatuidade crer ser o seu único beneficiário. 

À medida que perdemos a memória, os elogios que nos fizeram dissipam-se, contrariamente às reprovações. É justo: raramente merecemos os primeiros, ao passo que as segundas lançam alguma claridade sobre aquilo que ignorámos de nós mesmos.

Se tivesse nascido budista, tê-lo-ia permanecido; tendo nascido cristão, deixei de sê-lo na minha adolescência, numa época em que, mais do que hoje, poderia ter reforçado a blasfémia que Goethe, no ano da sua morte, deixou numa carta a Zelter: “A cruz é a imagem mais odiosa que existe debaixo do céu.”

O essencial surge, frequentemente, no final de uma longa conversação. As grandes verdades dizem-se à soleira da porta.

Aquilo que está caduco em Proust são esses nadas carregados de uma vertigem prolixa, os resquícios do estilo simbolista, a acumulação de efeitos, a saturação poética. Seria como se Saint-Simon tivesse sido influenciado pelo Preciosismo. Ninguém o leria hoje em dia. 

Só se pode escrever uma carta digna desse nome sob o efeito da admiração ou da indignação, do exagero em suma. É por isso que uma carta sensata é à partida uma carta já sem vida.

Conheci escritores obtusos e mesmo idiotas. Pelo contrário, os tradutores com quem tive a oportunidade de contactar eram mais inteligentes e mais interessantes do que os autores que eles traduziram. É que a reflexão é mais necessária para traduzir do que para “criar”.

Quem for considerado “extraordinário” pelos seus amigos íntimos não deverá dar provas em contrário. Que não deixe quaisquer vestígios, que sobretudo não escreva, se um dia pretender ser para todos o que foi para alguns.

Para um escritor, mudar de língua é escrever uma carta de amor com um dicionário.

“Sinto que chegaste a detestar tanto o que pensam os outros, como o que tu próprio pensas”, declarou-me ela de imediato depois de uma longa separação. Chegado o momento de nos despedirmos, contou-me um apólogo chinês do qual se podia deduzir que nada iguala o esquecimento de si mesmo. Ela, o ser mais presente, o mais repleto de energia interior e de energia em geral, o mais submergido no seu eu, o mais transbordante de si mesmo que se possa imaginar – por que espécie de mal-entendido defende ela agora o apagamento, ao ponto de crer que me estava a dar o exemplo perfeito?

Intoleravelmente mal-educado, avarento, sórdido, insolente, subtil, capaz de apreender os mais pequenos matizes, uivando de alegria face a um exagero ou a um gracejo, intriguista e caluniador…, tudo nele era charme e repulsa. Um canalha de quem sentimos falta. 

A missão de cada um de nós é a de levar a bom termo a falsidade que encarnamos, a de se chegar a ser apenas uma ilusão esgotada.

A lucidez: um permanente martírio, uma façanha inimaginável.

Todos aqueles que nos querem fazer confidências escandalosas contam cinicamente com a nossa curiosidade para satisfazer a sua necessidade de espalhar os segredos. Sabem também que seremos demasiado invejosos para os revelar. 

Só a música consegue criar uma cumplicidade indestrutível entre dois seres. Uma paixão é perecível, degrada-se como tudo o que participa da vida, pelo que a música é de uma essência superior à vida e, bem entendido, à morte.

Não possuo o gosto pelo Mistério porque tudo me parece inexplicável, ou melhor, porque vivo do inexplicável do qual estou farto. 

X. intima-me a que me comporte como um espectador, que não esteja a par de nada, que me sinta repugnado pela novidade. – “Mas eu não quero mudar absolutamente nada”, respondi-lhe. Não compreendeu o sentido da minha réplica. Tomou-me por alguém modesto.

Assinalou-se, com propriedade, que o jargão filosófico muda tão rapidamente como o calão. A razão? O primeiro é demasiado artificial; o segundo demasiado vivo.

Vive os seus últimos dias há meses, há anos, e fala do seu fim no passado. Uma existência póstuma. Surpreende-me que, não comendo quase nada, consiga durar: “O meu corpo e a minha alma tardaram tanto tempo a soldar-se que já não se conseguem separar.” Não tem a voz de um moribundo porque já há muito tempo que ele já não está vivo. “Sou uma vela soprada” é a expressão mais adequada que pronunciara sobre a sua derradeira metamorfose. Quando invoquei a possibilidade de um milagre, a sua resposta foi: “Precisaria de vários.”

Depois de quinze anos de solidão absoluta, São Serafim de Sarov exclamava diante do mais insignificante visitante: “Ó minha alegria!” Será que quem nunca deixou de conviver com os seus semelhantes seria suficientemente extravagante para lhes dirigir uma tal saudação?

Sobreviver a um livro destruidor é tão penoso para o leitor como para o autor.

É preciso estar num estado de receptividade, ou seja, de fraqueza física, para que as palavras nos possam tocar, insinuando-se em nós e dando início a uma espécie de carreira.

Ser chamado de deicida é o insulto mais lisonjeiro que podemos dirigir a um indivíduo ou a um povo.

O orgasmo é um paroxismo; o desespero também. Um dura um instante; o outro uma vida.

Tinha um perfil de Cleópatra. Sete anos depois: poderia estar a pedir esmola numa esquina. Que isto vos previna contra toda a idolatria, contra todo o desejo de procurar o insondável nos olhos, num sorriso ou no resto.

Sejamos razoáveis: ninguém pode estar a par completamente de tudo. Face a uma desilusão universal, não haveria qualquer vantagem em existir um conhecimento universal.

Tudo o que não é pungente é supérfluo, pelo menos na música.

Segundo Nietzsche, Brahms representaria “die Melancholie des Unvermögens”, a melancolia da impotência. Esse juízo, que ele teve no limiar do seu colapso, mancha para sempre o seu esplendor.

Não ter concretizado nada e morrer-se esgotado.

Esses transeuntes idiotizados – como chegámos a este ponto? E como imaginar tamanho espectáculo na Antiguidade, em Atenas por exemplo? Um minuto de lucidez aguda no meio destes condenados e todas as ilusões se desmoronam.

Quanto mais se detesta os homens, mais maduro se está para Deus, para um diálogo com ninguém.

A fadiga extrema chega tão longe quanto o êxtase, com a diferença de que com ela descemos aos confins do conhecimento. 

Da mesma forma que a aparição do Crucificado dividiu a história em dois, também esta noite acaba de dividir em duas metades a minha vida…

Assim que a música se cala, tudo parece degradado e inútil. Compreende-se que se possa odiá-la e que possamos sentir a tentação de considerar o seu absoluto uma fraude. Quando a amamos em demasia, é necessário reagir contra ela a qualquer preço. Ninguém melhor do que Tolstoi terá percebido o perigo, porque ele sabia que a música tinha o poder de fazer com ele tudo o que ela quisesse. Foi por temer poder vir a converter-se no seu joguete que ele começou a execrá-la.

A renúncia é a única variante da acção que não é aviltante.

Poder-se-á imaginar um cidadão que não tenha a alma de um assassino?

Amar apenas o pensamento indefinido que não atinge a palavra e o pensamento instantâneo que só vive através da palavra. A divagação e a boutade.

Um jovem alemão pede-me um franco. Começo a conversar com ele e fico a saber que já percorreu meio mundo, que já foi às Índias, cujos mendigos admira, gabando-se de ser como eles. No entanto, não é impunemente que se pertence a uma nação didáctica. Observei-o: tinha o ar de quem tinha frequentado o curso da mendicidade. 

A natureza, em busca de uma fórmula que contentasse toda a gente, escolheu a morte que, como seria de esperar, não satisfez ninguém.

Há em Heráclito um lado Delfo e um lado manual escolar, uma mistura entre visões fulminantes e rudimentos; um inspirado e um outro professoral. É uma pena que não tenha feito abstracção da ciência, que nem sempre pensasse fora dela!

Tantas vezes vociferei contra qualquer forma de acto que manifestar-me, seja de que forma for, me parece uma impostura, uma traição. – Mas você continua a respirar. – Sim, faço tudo o que toda a gente faz. Mas

Que juízo sobre os vivos se for verdade, como alguém defendeu, que tudo o que perece jamais existiu!

Enquanto me expunha os seus projectos, escutava-o sem conseguir esquecer que não sobreviveria esta semana. Que loucura falar de futuro, do seu futuro! Mas como não pensar que, afinal de contas, a diferença entre um mortal e um moribundo talvez não seja assim tão grande? O absurdo de fazer projectos é apenas um pouco mais evidente no segundo caso.

As nossas admirações datam-nos. Sempre que citamos alguém que não seja Homero ou Shakespeare, corremos o risco de parecermos antiquados ou ultrapassados.

Podemos sempre imaginar Deus a falar francês. Cristo nunca. As suas palavras não funcionariam numa língua que se revela tão inadequada tanto para a ingenuidade como para o sublime.

Interrogar-se sobre o homem durante tanto tempo! É impossível levar mais longe o gosto pela insalubridade.

Provirá a raiva de Deus ou do diabo? – De ambos: de outra forma como explicar que ela sonhe com galáxias para as pulverizar e que se revele inconsolável por ter ao seu alcance apenas este pobre e miserável planeta?

Debatemo-nos tanto – porquê? Para regressar àquilo que éramos antes de ser.

X., que fracassou em tudo, queixava-se de não ter destino. – Muito pelo contrário. A série dos teus fracassos é tão admirável que parece revelar um desígnio providencial.

A mulher foi importante enquanto simulou pudor e reserva. Que deficiência revela ao deixar de jogar o jogo! Deixa de valer alguma coisa, uma vez que assim se nos assemelha. É assim que desaparece uma das últimas mentiras que tornavam tolerável a existência.

Amar o próximo é uma coisa inconcebível. Será que pedimos a um vírus que ame um outro vírus?

Os únicos acontecimentos significativos de uma vida são as rupturas. São a última coisa a apagar-se da nossa memória.

Quando descobri que ele era totalmente impermeável a Dostoievski e à Música, recusei-me a conhecê-lo, apesar dos seus grandes méritos. Prefiro de longe um atrasado que seja sensível a qualquer um daqueles dois. 

O facto de a vida não ter qualquer sentido é uma razão de viver, a única de resto.

Tendo vivido, dia após dia, na companhia do Suicídio, seria injusto e ingrato da minha parte denegri-lo. Haverá alguma coisa mais sã, mais natural? Contrariamente ao apetite fanático de existir, tara grave, tara por excelência, a minha tara.

“Fracturas”, in Confissões e Anátemas, a editar em breve pela abysmo.