Com lídia e ricardo reis à beira tejo

Poesia José Luiz Tavares

Não é nossa, lídia, esta primavera 
rebentando contra os vidros.
Cresce, viva, a devastação, lídia,
e só à distância um rosto
pode irmanar-se a outro rosto.

Tristes e juntas, na vernal solidão,
apenas as nossas mãos, lídia;
por muito que o marulho do tejo
nos convide a vir imaginar
o tamanho do mundo,
demora, lídia, a ordem para que
nos multipliquemos pelos renascidos
relvados da beira-rio.

A ocasião é de proclamar
o amor aos desertos, lídia,
saber que o vento e a areia bastam
a quem errou o mundo
e foi apenas ridícula testemunha
do que não soube viver.

Mas é com a dor dos outros, lídia,
com a perdição dos outros que iludimos
a nossa impotência para a vida,
e encontramos cautério para o vazio
de não termos sabido existir.

Mas, devagar, ou menos que devagar,
dão-nos a ração do conforto, lídia,
neste horizonte de silos mudos e casas
alvoroçadas, porque também elas
se abrem à pura ilusão do porvir.

Talvez tudo não passe de simples sonho,
lídia, ou sequer sonho, mas miragem 
sem corpo, porque estas ruas vazias
confundem os sentidos e é vivo mistério
esta paz que só se encontra nos montes
que não existem.

Ó lídia, abandonemos ao vento as amarras
de ser corpo e naveguemos só mentalmente
à beira-tejo, contemplando os longos
ocasos com o garbo dos navios 
que partem para o longe, 

sem a perplexidade que faz
germinar entre nós e as margens
esta estranha primavera em que as estátuas
concedem o bafo consolador aos que vêm
a treva crescer sobre o corpo,
e a festa livre não é a do sexo, lídia, mas do susto
deflagrado nas vastas volutas do pensamento.

Partamos sem outro álibi
que a imaginação da viagem, lídia,
pelo instante em que um sol clandestino
doira as casas sem mistério,
seca o corpo da manhã ainda líquida;

e tu, lídia, tapa o riso 
até seres perfeita estátua
para o esdrúxulo palavrão, 
guarda a grande propensão para o sonho,
que o tempo te espera 
com a pólvora e o punhal
nas esquinas duma cidade
onde a caridade da hora
é a disponibilidade das ruas silenciosas,
onde se morre longe do intolerável olhar
dos outros, longe da pena dos outros, lídia,
sem escândalo e sem dinheiro,a olhar inadimplente o rio em frente.