A Pele

Conto Andreia Azevedo Moreira

CLANDESTINOS

«Temo esquecer aquele toque e, então, quem me tocava.»

Em casa, há cinquenta dias, dei comigo a afligir-me pelos amantes apartados neste período estranho que vivemos. Não os domésticos. Esses seguem no amor sem pressa, bem-querer-hábito, feito de gestos brandos. Perderam a turbulência, algures, entre os compromissos, as responsabilidades e o desgaste próprio do tempo. Erodiram-se em confinamentos vários, anteriores à pandemia. Condoo-me, sim, dos corações vadios. Quantos inadiáveis se encontram, agora, interrompidos? Sobreviverão ao afastamento sem prazo? Haverá força suficiente nas palavras ímpares, que os mantenha suspensos até ao reencontro dos corpos? Uma coisa é um contrato. Outra, distinta, é a fome.

«I WANT YOU»

Observo-te. Mantemo-nos à distância sem desviarmos os olhos presos. Serei capaz de atravessar? Encontramo-nos a dois metros. Hesito entre o cumprimento formal e seguir como se não nos tivéssemos encontrado. Gostas de dificultar: não avanças nem recuas. Ficamos a medir-nos como duas janelas por abrir. Porque me olhas tão sério. Queres que siga. Prescindiste, há muito, das respostas e eu longe de estar cansada de questionar. Colocaram-nos cimento nas articulações. Impede-nos de prosseguir e da tentativa de fuga. Minto: «um abraço. Desapareço.» Não dás sinal de aceder e já me agarrei a ti resoluta. Colo o meu corpo ao teu. Quero descobrir se os perfis ainda encaixam. Interessa-me, por exemplo, a compatibilidade dos pescoços. Vou atrás da tua orelha, perco bom senso e pudor, desenho-a com a língua. Desço até à clavícula. Acumulo os cheiros teus para o mapa da memória. «Senti a tua falta.» Permaneces em silêncio hirto, expressão escondida pela metade, mãos pendentes, luvas postas. Escondo o rosto no teu peito. Recuarei. Trato de fingir que não te vi e que não tentei seduzir-te, apesar do perigo a que nos expomos pela proximidade. Negarei tudo, humilhada pela tua indiferença. Desisto. Estava preparada para a derrota. Coloco o pé para o passo atrás. «Desculpa se te coloquei em risco, à tua família. Não quero fazer-vos mal.» Ando para aqui ao frio há semanas. Acreditei na possibilidade de também sentires falta do meu calor. Coincidência. Juro. Sou incapaz de perseguir. Correrei para um lugar remoto. Não tenho sintomas, é pouco provável o contágio. Impedes a passagem. Não consigo reconhecer-te na severidade. Sabes bem como me perco na ausência de sorrisos. Estás a magoar-me. Fico? As nódoas negras que se desenham nos meus braços pálidos são do desejo que te devoto. Silêncio: o modo que arranjaste para me despires. Mordes porque não podes beijar-me. Desaprendemos a ternura na espera: demasiado longa para perdermos tempo, agora, com refúgios. A rua ficou deserta, por respeito ao nosso inadiável. Efabulo, claro, é o estado de emergência. Bebo o meu sangue e o teu. Também te mordo. O susto de me achar nua à tua frente ficou no princípio da história. Empurro-te, bruta. Bates com a cabeça no prédio onde nos fomos apoiar. Não há dor. Confirmas:

«Não sinto dor. Estás aqui, enfim.»

Agrido-te com a vontade. Não te defendes. 

«És a seguir.»

Pelo toque procuro revelar-te. Cega, é com as mãos que te vejo. Quero relembrar cada singularidade. Puxo-te. Avanço, implacável, na tua pele para te matar em mim. Não é saudável viver-se com uma pulsão destas a comer-nos o pensamento. Tenho os tímpanos a zunir. Lembras-te: chegaste-me ao coração pelos ouvidos. O prazer comanda. Aguardas que mate a sede. Insaciável, lambo desvairada o teu sal. Tenho o sexo quente de tanto sangue. Pulsação e expectativa. Viras-me. A máscara cai. Rosnas no meu cachaço.

«Calma. Teremos outra oportunidade.»

Duas mãos que pousem onde preciso, uma boca da qual espero o indizível, narinas que me respirem. Apertas-me contra ti. Sinto-te, dentro.

«Não basta.»

Apoio os braços na parede, sorriso cúmplice. Empurro-a cadente. Estás onde quero.

«Espera.»

Impaciente, precipito-me para a construção e para o teu ventre em vertigem. És desnorte e tolerante comigo. Aguardas a vez para me assassinares em ti. 

«Depois de uma paixão destas, só a morte.»

Sou leve nas tuas mãos. Manipulas-me bem, apesar da obesidade, resultado dos dias que gastei a fazer pão, a molhar bolachas Maria com manteiga no café, a experimentar receitas do Pantagruel. A aceitação inquestionável desta aparência desigual comove. A coreografia da nossa dança é inconstante na pista escorregadia. Somos suor. Os meus pés deixaram o chão muito antes do teu colo. Quebrar-me-ei na queda e não haverá resgate. Constato que continuas sem falar. «És omissão.» Há em ti segredos ou apenas vazio? Quero dizer-te coisas indecentes ao ouvido. Profiro-as dissimulada. Creio que não queres escutar. Empurras-me de novo, firo o rosto na superfície arenosa, enquanto fazes dos meus cabelos rédeas. Nada sei de ti, neste torpor, só de mim: enfraquecida, letárgica, depois da torrente. Desviaste-te. Nojo. Medo. Desconfiança.

(Inês) 

– Ter-me-á visto?

(Pedro)

– Não me apeteceu, eis tudo.

O cadáver de Inês terá sido encontrado um século mais tarde. Tinha epiderme, músculos atrofiados, unhas, cabelo. A face reconhecível mutilada do lado esquerdo. Sorria despida. A autópsia declararia órgãos. Um milagre. Foi trabalhoso removerem o coração para se aferirem as causas do óbito. Continuava iludido.

«A PELE»

Vivi apartado da Pele sem que custasse. Respirava sem ela. Comia sem ela, embora comer não seja o mesmo do que alimentar-me. É mastigar sem sentido. Dormia sonos pacíficos, noites inteiras. Caminhava. A Pele não fazia falta. Esquecia-a, esquecia-me. Eis que, ao passar-me pelas mãos na sua temperatura, tonalidade inconfundível, na textura que os dedos insistiram ler, alguma coisa se alterou: uma espécie de alvorada. Conhecer a Pele magoou cada centímetro tocado, por ter consentido a escassez. 

«Falhei-te?»

«Desconhecia-o e não podias adivinhá-lo.»

A Pele apertou-me o pescoço arrepiado pelo espanto da visita. Os pulmões franquearam a entrada ao beijo-exército e encheram-se de fôlego, até então débil. Desceu ao peito, o coração acelerou despreparado para o calor. Prosseguiu a queda, sorrimo-nos, na descoberta. Constatei: vivia, há demasiado, das noites e dos luares. Ao frio.

«Não me reconheces…»

«Recorda-me o teu nome.»

«Pele.»

Cheiro a Pele em ruídos animais. Odor é força e inscreve a sua marca no território interior. Provo-a. Rio-me perdido em revoltosa saudade, por me ter sido estrangeira todo este tempo. Não há retorno para a Pele em dívida. Fome e vontade de a morder sôfrego. Limito-me a prová-la: primeiro a língua leve, delicada. Depois, vibrante. Tacteio, cego, a Pele que me ensinará a morrer todos os dias. Cada despertar é passo de regresso à carência, por isso me deseja violenta. Estamos sem futuro, a liberdade partiu. Respondo ao seu apelo com cabelos, entre os dedos enluvados, que puxo para perto. Recuperar tempos perdidos também é história. Há compassos, contratempos, escolhas, desacertos. O meu é de tal modo excessivo que não cabe na Pele. Em nenhuma outra, na própria, menos ainda. Hoje, sou o vício de querê-la sempre aqui a cobrir-me, sendo posse, ainda que os instantes se revelem impostores doces. Quando desaparece, tremo. Contorço-me doentio na espera, pela remissão que devolva o oxigénio ao cérebro, a acção às articulações, a cadência ao músculo vital. Trago a boca aberta nesta falta de ar que me grita: morre. Vivo. Encontro-me fraco, inexpressivo, desnudo. Para onde terão debandado os risos? Estou farto das lágrimas, dos olhos pesados, da angústia, de me trazer diminuído. 

Penso: «Calma. Isto passa. Ficarás bem. A Pele passa.»

(Facto: 13,8 horas até que o sangue se limpe.

Questão: O que são umas horas da existência?)

Ao passar, a Pele deixou-me neste estado, cilindrado, entregue ao seu modo de ser sinuosa e feroz e distante. Recuso a ilusão do aconchego, desconhecendo como poderei voltar ao desalento justo, ao não precisar da Pele. Como não carecer do que faz bem ao tacto, a todos os sentidos? Devo acudir o corpo doente ou a índole que aspira sobreviver escorreita depois dela?

Crente que opto, ouço com a nuca o murmúrio quente de um hálito que reconheço e adoro. Trago-lhe a voz nos tímpanos:

«Fez-se tarde.»