Ginástica matinal

Conto Francisco Resende

Ó mulher!
Mas que…?
Diacho!… que fazes?
Cambalhotas logo pela matina?
Pelo amor da santa, filha, tem dó! Brincadeiras dessas a esta hora? Sabes bem que a idade já vai pesando, e tu p’ra lá caminhas, já devias ter vergonha nessa cara. É só mesmo p’ra m’atazanares a cachimónia. E tinha logo de ser hoje? Eu aqui, com a manhã toda programada, e tu aí, a armar basqueiro. Olha o chinfrim qu’arranjastes. E porquê? Só porque te falei em mimos? Foi isso? Gostas de dar nas vistas, é o que é. Eu sempre disse. Sim, eu sempre disse que não passavas d’uma sacaninha depravada. E é só quando queres e t’apetece. Só sabes olhar p’ro teu umbigo, egoconcêntrica dum raio (é assim que se diz? é?), e os outros que se fod… lixem. Irra, qu’até me fazes falar mal. Já deves estar satisfeitinha, não? Gostava de saber agora como é que te vais safar d’alhada. Acordaste meio mundo, tudo em polvorosa, até conseguiste parar o trânsito. E como de costume, depois do regabofe, ficas p’raí parada e muda, com esse ar de sonsa. É mesmo teu: o pessoal à rasca, ao Deus m’acuda, e tu como se nada fosse, a gozares da ralação dos outros, a rires-te por dentro, qu’eu bem sei. Até parece que o vejo daqui, esse teu sorrisinho de gozo… Ah, conheço-o tão bem, esse sorrisinho de gaja. E escusas de tentar disfarçar, qu’essa fuça desdentada desmascara-te em três tempos, cínica de merda, sempre armada em superior, a dizer como é. E a seguir, claro, pões-te a olhar o céu, com esses olhos esbugalhados, sempre aluados, a passear pelas estrelinhas, tão aluados qu’até mete raiva. E essas vestimentas? Deves pensar que és uma dessas pitinhas qu’andam p’raí a pavonear-se com tudo ao léu. Coisa nojenta, sempre toda produzida. Acho normal, dizes tu, é só uma corzinha, dizes tu, a disfarçar as olheiras, dizes tu, sempre a inventar desculpas. Balelas! Mentes com todos os dentes que te sobram. Julgas que eu não sei mas ‘tás bem enganada, a mim não m’endrominas. Eu sei tudo! Eu vejo tudo! E eu nem sou de ciumeiras, não sou não senhora, nem um pingo, ouvistes? Deus é minha testemunha. Ah, mas eu dava um olho p’ra entrar nessa tua cabecinha oca e ver a porquice que por lá vai, minha grande put… ah, cala-te boca, esta gaja só me faz parvaricar (ou lá o que é), Deus me perdoe, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ámen, mas Ele sabe o meu calvário, Ele sabe bem o demónio que trazes no corpo. A ruindade em pessoa, é o que és. Quem me ouvir até é capaz de pensar mal, mas é isto a toda a hora, todos os dias a mesma coisa, porrrrrra! Arrelias e apoquentações, é só o que m’arranjas, ecocêntrica d’uma figa (é assim? é?). Tens de engendrar sempre uma p’ra me chateares os cornos. E depois lá tenho eu d’ir desfazer o embróglio. Uma vida inteira a cuidar de ti, a tratar de ti, tanta dedicação, tanto mimo, e p’ra quê? Qu’esperdício… não mereces nem um dos meus cabelos brancos, todos os meus cuidados. E hoje mais esta. Raisparta a mulher! Vamos lá acabar com a palhaçada qu’eu tenho mais que fazer. Ainda por cima pões-te a boiar. Olha-me só a poça, parece um lago… Eh, vê lá se t’afogas. Vá, chega, deixa-te de cenas e sobe, anda p’ra dentro, já tenho aqui o teu miminho, preparadinho, prontinho só p’ra ti. Mas co’a breca! O qu’é que te deu hoje, criatura? Atirares-te assim p’la janela? Esborrachares-te assim no passeio? Ficares p’raí nessa morrinha, nesse estorpor? (Vá, diz lá como é, diz. Diz!).
E logo hoje, que tinha a manhã toda programada.