The girl that’s driving me mad

Conto Raquel Serejo Martins

Depois do amor o meu casamento acabou, sem filhos nem animais de estimação, a dividir e empacotar livros, os meus, os teus e os nossos e a cada um dos “nossos” uma discussão.

Voltei para casa dos meus pais, não queria voltar mas estava tão cansada e era tão fácil que só fingi hesitar quando aceitei o convite do meu pai que, sucinto como sempre foi, apenas disse o teu quarto está sempre lá.

E o quarto estava lá e estava igual.

Eu diferente. O quarto igual.

Igual o poster dos Beatles pendurado na parede, eu não tinha nada para ser fã dos Beatles e, no entanto, não tive afã por mais nada, mesmo se acabaram dez anos antes de eu nascer, mas tinha um tio que adorava os Beatles, um tio que eu adorava e que me contaminava todos os seus gostos e desgostos.

Igual o tamanho da minha cama, corpo e meio para não me atrofiar o crescimento, os movimentos do corpo, para evitar a despesa de uma cama nova.

Igual o edredão, e não me apanham a descrever o edredão.

Igual o tapete onde as rosas, o rosa e o verde, a desbotar como flores a murchar.

Iguais as estantes com os meus livros, os escritores russos, a boneca russa que me encantou durante tanto tempo.

Igual a secretária onde estudava, o meu velho rádio de cassetes, o armário embutido, roupa minha dentro do armário.

E cansada ao ponto de nem sequer desfazer a mala, demasiadas coisas desfeitas num só dia, pedi uma escova de dentes à minha mãe, discuti como sempre com o plástico colado ao papel que embrulhava a escova de dentes, numa embalagem que, apesar de oferecer aos clientes um picotado, nunca consegui a proeza de abrir pelo picotado. Lavei os dentes, a cara, remexi as coisas da minha mãe, usei um dos seus cremes, um creme anti-rugas que ainda não uso, que devia usar, atentos os conselhos dos mais doutos lentes na matéria, a partir dos trinta, a partir dos trinta e cinco, mesmo nesta área a doutrina diverge, teorias impossíveis de pôr em prática, uma vez que já ultrapassei os dois limites, e por coisas destas, minudências e montanhas, um azedume, um princípio de azia a fermentar-me no estômago, por perceber que me transformei na pessoa que não queria ser.

E pus perfume, o perfume de toda a vida da minha mãe, o que eliminava qualquer possibilidade de surpresa nos presentes de anos e Natal, ou seria ao contrário, e simplesmente não permitíamos que a mãe mudasse, pois ninguém quer que a mãe mude ou sobretudo envelheça. Um perfume que eu detestava. Um perfume de que aprendi a gostar.

Um perfume que pavlovianamente me põe a snifar estranhos ao ponto de esperar um sorriso, o que não sei explicar, porque a minha mãe é uma pessoa sisuda, sorri o suficiente, sorri por educação, não mais.

O senhor sucinto e a senhora sisuda, foi assim que cresci, o que talvez explique a importância do meu quarto, dos meus livros, eu, como sempre, à procura de explicações.

E, no quarto, vesti um dos meus velhos pijamas. Estava novo. Não o deixei no armário por esquecimento ou acaso. Foi a última prenda em vida da minha pragmática avó paterna, um pijama camisola lisa, não verde alface mas verde sapo, calças brancas com sapinhos espalhados pelo branco algodão. Um pijama que pôs o meu irmão mais novo, quase na maioridade, sempre que me sentei de pijama à mesa do pequeno-almoço, a comer torradas com manteiga e compota, exagero que me faz duvidar se essa miúda era mesmo eu, e sempre, apenas uma semana, não voltei a usar o pijama. Não estava para ouvir o puto a cantar eu vi um sapo, um grande sapo, tudo comeu, nem ofereceu, enquanto minha mãe batia o pé a compasso e nada dizia, depois de tantas discussões, os olhares de reprovação eram mais do que suficientes, não precisava de falar, de dizer que eu era uma desmazelada por me apresentar, despenteada, cara por lavar, de pijama à mesa.

E, vestida com o pijama dos sapos, olhei em volta e não chorei, tinha prometido a mim mesma que não ia chorar, não chorei e ainda brinquei, brinquei comigo antes de apagar a luz, disse baixinho, boa noite John, boa noite Paul, boa noite George, boa noite Ringo, que comigo sempre falaram na língua do Godinho e do Palma, e depois de apagar a luz não consegui evitar cantar mentalmente I think I’m gonna be sad, I think it’s today, yeah, the girl that’s driving me mad, is going away, she’s got a ticket to ride, she’s got a ticket to ride, she’s got a ticket to ride, but she don’t care… e não chorei.

Há muito tempo que não cumpria a mim mesma uma promessa.