O sangue entre ilhas

Conto Carlos Alberto Machado

Nos cavos fundos do mar do Oriente peregrinado pelo Fernão Mendes Pinto escondem-se tesouros e estórias que custa contar a gentes que viram pouco do mundo, porque essas gentes não têm como dar crédito ao muito que outros viram e viveram. 

Matina toldada de Primavera no canal atlântico Pico-Faial que já uniu e separou amores, ligou diferentes línguas entre continentes, se cobriu de sangue e de mitos. Navio de aço e pompa, herdeiro novo-rico da tradição de gritos e choros da travessia nas frágeis lanchas de madeira e atrevimento. A perna do cavador picaroto vai presa à ligadura solta. Soltos os fios de gaze na brisa. Babugem de gangrena. Home, pronde me levas? A maca truz-truz sai desajeitada da ambulância e galga cega o aço da “lancha” nova, trepidação zebrada do pregueado da rampa. Carne cansada, desistente, em barcaça sem direito à dignidade de um qualquer Caronte. Tou canceroso do sangue, pra qué que me levam daqui? A coisa d’aço exibe o seu poderio, a força dos êmbolos que erguem a pesada rampa bipartida, guinchante, estridente de apitos regulamentares. Em marcha, lenta, os motores civilizaram com o dinheiro deles da Europa mas é preciso poupar em combustível, poucos nós, a mesma meia-hora de travessia dos barcos velhos. Catrapum, salta a maca. Nã me deslargues, minha puta! Já falta pouco, vôzinho. Falta pouco pra quê? Não se canse, não lhe bastou já o caminho da Ponta da Ilha para a lancha? Viagem demorada, com vacas a atravancar estradas. 

Betão à vista, o cais novo da Horta, Faial, dez milhões dele. Enganaram-se no tempo, na ilha, não sabem o que querem, ninguém sabe. Mas está tudo bem. Os homens descasam-se, encomendam brasileiras pela internet, vinho de cheiro às carradas, subsídios para as vacas. Mas este ano não há Espírito Santo, coisas do Covid lá do continente. De novo o guinchar ensurdecedor da plataforma de aço. É uma distracção como outra qualquer, aquilo a descer do aço para o betão, os olhos a acompanharem a descida, sempre igual, tumba, já está! “Condutores ao cardeque!”. Cordas, cordames, roncos, maresia gasoleada. É só esta maca? É, o avozinho vai para a Hemato-Oncologia, Que desperdício. O quê? Não há ninguém lá dentro, nem uma grávida? Não, um gajo deu-lhe um stroque mas não quis vir prà Horta para depois não ficar duas semanas de quarentena no Pico, Nem as grávidas agora querem vir à Horta, Ó sôra enfermeira, olhe lá a gaze da perna do home, que se vai! Deixá-lo ir… Ruído zebrado. A gangrena.

Hoje o mar tá calmo, tá comà méli, só uns carneirinhos ali pròs lados da Espalamaca, o sôr também veio de lá do Pico? O qué que’sta gaja quer? Não faça força com a mão, sossegadinho. Isso é sangue novo ou quê? Mais ou menos. Atão nã tenho dereito a bosta nova? É para ajudar o senhor a ficar como novo, Isso dói, caralho!, tou canceroso do sangue, deslarguem-me, mas é! Depois vai comer uma bolachinha e beber um copinho de leite e ficar ali deitado, sossegadinho se faz favor, que agora só há lancha de volta para o Pico ao fim da tarde, por causa do Covid, Isso é um dia do caneco!, Sossegadinho, está quase. Putas!

O sangue estancado do velho cavador vai com ele embalado pelo sobe-e-desce manso do barco mais poderoso que os mais poderosos monstros da imaginação, o entre–ilhas é um mar de sangue que faz a gente pequena, e a América deixou de ser horizonte.

Já se faz noite, agora só mais uma horita té casa, hem? Devo ter lá uma gamelada à minha espera, Pois deve, Lá me ficaram com a outra perna, quer lá ver, caralho!, Nã senhor, ainda tem as duas, Ah, tenho?, Tem… Este inferno chia que se farta e o enxofre tresanda… Depois vai ver as suas vacas… Vacas, quem é que tem vacas?