Raul Brandão na minha horta

Crónica Tomás Vasques

Hoje, ao quadragésimo quinto dia do estado de emergência, e mais um pouco de isolamento obrigatório, por via desta pandemia que nos assola, aqui, onde vivo, no Alto Alentejo, estiveram 32 graus à sombra. Com esta calmaria primaveril, se me sentasse, por meia hora, junto aos canteiros da minha horta, certamente que, com alguma concentração, e (quase) sem caricaturar, observaria os tomateiros a treparem pelo emaranhado das canas que com tanto zelo e amor ali montei para esse efeito; as folhas da rúcula a engrossarem; as cebolas roxas a brotarem mais uns centímetros da terra; e os pimenteiros, as cenouras, os pepinos, as malaguetas e tudo o resto a crescer à vista desarmada de qualquer microscópio e a aproximarem-se de uma divinal salada, de um saboroso guacamole ou de um  ceviche de  lambuzar. Enquanto isso, o coaxar das rãs, ali ao lado, no lago dos peixes; o chilrear rítmico de dezenas de pássaros de diferentes cores e tamanhos que esvoaçam de árvore em árvore; ou mais ao longe os gritos de acasalamento dos pavões completam  o silêncio e a tranquilidade de um dia no campo. É a natureza!

Ao falar na Natureza lembrei-me de Raul Brandão. Houve uma altura em que não gostava da Natureza. Nem do campo. Estou a vê-lo, ali, na Praça, a acarinhar as pontas daquele seu bigode vagamente circunflexo, enquanto cismava  e se interrogava: “que procuram os nossos grandes escritores, desde Herculano a Fialho, na Natureza?”  E o grande poeta Guerra Junqueiro? Esse, quando vinha a Lisboa trazia “ainda terra pegada nas mãos, desde que foi para essa longínqua quinta repleta de vinha lá para Barca de Alva”. Ou Fialho de Almeida, o cavador de génio, perdido pelo Baixo Alentejo, a produzir vinho e a sonhar com um livro que nunca chegou a escrever. Como o próprio dizia: “Livros? … o que eu trato de editar é um vinhito branco lá de Cuba”. O autor de Húmus procurava no seu íntimo uma justificação para aquele devaneio de tanta gente deixar a cidade e retirar-se para o campo, ocupando o tempo em tarefas agrícolas, em jardinagem ou em simples contemplação da natureza: “talvez as árvores e os montes nos preparem melhor para o sepulcro e para o verme”. Mas, de imediato, convicto, afastava essa suposta preparação campestre para a morte, e exclamava: “julgo que não há como um 6º andar, com livros e papéis, e um cinematógrafo no rés-do-chão, para acabar com vida”.  

Regresso da horta, a pensar em Raul Brandão, e sento-me em frente ao computador a ler os jornais online. Sim, estar aqui, no campo, ou num 6º andar de uma qualquer avenida, em Lisboa, é indiferente. O mundo e os outros estão ali, à minha frente – a todos chego através daquela pequena maquineta. Num dos jornais passo os olhos por uma entrevista de um arquitecto italiano, Stefano Boeri, professor em Milão, capital da Lombardia, região mártir da actual pandemia. Diz ele na sua sabedoria que “as cidades vão transformar-se em bombas de contaminação”. O futuro está na Natureza, no regresso ao campo e às aldeias. Stefano concretiza: “A Itália conta 5 800 aldeias, incluindo 2300 quase abandonadas.” É aí – diz ele -, nessas aldeias, no campo, que se construirá a “nova era” pós-pandemia. O futuro. Ecológico. Saudável. Sem combustíveis fósseis. Em teletrabalho. Na horta ou em jardinagem. Junto da Natureza.

Acabei de ler a entrevista do arquitecto italiano e volta-me à memória de novo Raul Brandão. Lembro que anos mais tarde veio a renegar a ideia de morrer feliz num 6º andar de uma grande cidade. Em jeito de balanço de vida alinhavou estas sentidas palavras: “considero os meses mais felizes da minha vida aqueles em que eu e a minha mulher fomos viver para uma aldeia remota”. Comecei a escrever com o objectivo de vos falar da minha horta. Falar dos tomates, pimentos, alfaces, malaguetas, pepinos e tudo o resto e do prazer e do amor com que trato diariamente canteiro a canteiro. Mas desviei-me.  Como escreve Maria Gainza no seu excelente romance O Nervo Óptico, “suponho que seja sempre assim: escreve-se uma coisa para contar outra”.