Fora do Vazio

Crónica Márcia Balsas

Abro a porta de casa e aproximo-me do contador da luz. A primeira vez que saio em 40 dias. Pantufas, pijama, robe. Um ajuste ao cinturão, laço completo na frente, cintura aparentemente mais delgada, mãos à nuca compõem o rabo de cavalo, vaidades no patamar vazio. Todos como eu, isolados em casa, o prédio 100% habitado, 24 horas por dia. Não há elegância possível com pantufas e pijama. Imagino toda a vizinhança nesse preparo, casas de gente acordada com roupa de dormir. Deito uma olhadela ao piso de cima e outra ao piso de baixo. Os apartamentos libertam vozes, conversas que se misturam no eco das escadas.

Tiro o meu bloco de notas e um lápis do bolso do roupão, e olho o contador da luz através da porta de vidro que o encerra. Tomo nota: 1354 vazio; 1658 fora do vazio. Apesar de o ter anotado, vou para dentro repetindo como uma lengalenga: «1354 vazio, 1658 fora do vazio; 1354 vazio, 1658 fora do vazio; 1354 vazio, 1658 fora do vazio; 1354 vazio, 1658 fora do vazio.» Quando me sento à secretária para introduzir os dados da leitura no portal web nem preciso de olhar para o bloco de notas. «Bom para exercitar a memória», penso.

Pronto. Tratado. Próxima tarefa: almoçar. São 9h42m.

«Vazio.»

Expressão ampla, até serve para as horas em que a electricidade é mais barata. A palavra não me larga, é o que tenho até ser hora de almoçar. Mas isto de cumprir horários tende a extinguir-se, com tantas horas de vazio para encher. Antes nunca sobrava tempo para tudo o que era importante. Considerávamos tudo importante. E urgente. E prioritário. E fundamental. Éramos maratonistas do relógio. Agora os jornais fazem pilha na entrada, ainda dentro do plástico, tantos livros continuam por ler e nada serve para acabar com o vazio que ocupa a casa inteira. Os meus passos empantufados, corredor para trás e para diante. Conversas? Só dentro da cabeça, como esta. Sente-se, este vazio. Este tempo oco que se estica em horas longas, as mais longas de sempre, os dias espraiam-se cada vez mais, 25, 29, 32 horas. Além disso trocaram de ordem, ao despertar nunca sei que dia é, conto pelos dedos, «segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo», tudo aparentemente igual, mas não há fim-de-semana porque as semanas não têm fim. Vivo numa semana que começou há 40 dias, desconfio que teve várias segundas-feiras seguidas, pois o meu humor não experimentou a felicidade de uma sexta-feira, a alegria que antecipa os dias sem «feira», tão especiais como os seus nomes diferentes, fora da rotina «feira, feira, feira, feira, feira», mais parece uma sucessão de trabalhos forçados.

Sábado e Domingo.

A felicidade é fora do vazio.

Levo as mãos à face e rio deste trocadilho com a conta da luz.

10h20m.

«Quero ir para fora do vazio. Para fora daqui.»

E se for perigoso lá fora? Do vazio.

Dizem que é, que temos de usar máscara, luvas e desinfectar as mãos muitas vezes. Só podem entrar algumas pessoas de cada vez no supermercado e na farmácia; as filas têm de respeitar a distância de segurança. Ninguém se aproxima, as pessoas ganham medo umas às outras. Ninguém conversa. 

Tive a ideia de que pode ser tudo mentira. Uma forma de nos manterem isolados, quietos, à espera que seja seguro voltar. Enquanto isso, as paisagens conhecidas vão mudando até não restar nada de nós, lá fora. O vazio cria ideias de prisão. Eu falo por mim, em 40 dias perdi muito, a minha liberdade é por metro quadrado.

O vazio também dá medo. Medo da vida depois deste tempo (não sabemos quanto) de confinamento. Fechados, sossegados, calados. Sabemos o pouco a que temos acesso. O suficiente para ter medo de morrer. 

Quando regressarmos saberemos para onde? O nosso lugar, o nosso papel, a nossa função, serão ainda nossos?

O que vamos encontrar fora do vazio?