O dedo na ferida

Crónica Vasco Rosa

Dos pequenos aos grandes, e de alto a baixo: os efeitos da pandemia vão ser — já estão a ser — devastadores para editores, livreiros e impressores, como de resto para um grande número de outras actividades com relevância na vida quotidiana e social. Bastou uma trimestral suspensão de tudo e o lento e cauteloso recomeçar que se adivinha para que um rès de marée deixasse a descoberto fragilidades acumuladas e a precaridade duma indústria cultural instalada sobre falsos pilares. A incompetência das políticas públicas de incentivo à leitura também ficou à vista, pois a produção livreira não tem — como deveria claramente — suporte regular na compra de livros para bibliotecas municipais e escolares, cujos orçamentos para aquisições são reduzidíssimos ou nulos, da mesma maneira que o comércio electrónico directo entre editor e leitor não ganhou ainda — e talvez não ganhe tão cedo — capacidade de contrabalançar a ausência de uma rede de livrarias que chegue às cidades médias ou pequenas e aos lugares periféricos e ultraperiféricos, o aviltante sistema de consignações, a prestação de contas tardia ou até os calotes, mas também — sem dúvida — a manifesta dissolução das páginas de crítica na imprensa que mostrem o que se publica no país, em espectro alargado de interesses, personalidades e liberdades editoriais. 

Este mais apertado e cruel fecho de tenaz não é, pois, súbito cataclismo mas o efeito abrupto de uma precaridade persistente e acomodatícia que foi sendo mascarada por todos, e por cada um à sua maneira, e que o confinamento pandémico derrubou com um sopro.

Para que um mal venha por bem, é preciso um fôlego de lúcida reinvenção que ataque os entorses estruturais acima referidos sumariamente. Na minha opinião, sem isso nada feito. Passa sobremaneira pela aproximação dos leitores a bibliotecas rapidamente tornadas robustas e actualizadas que sejam elas próprias garantia de tiragens de livros bem sucedidas, pois a crise económica e social que resulta da pandemia de covid-19 vai maltratar por bastante tempo a economia das famílias e de indivíduos para quem a aquisição de livros não é tida como de primeira necessidade e por milagre não passará a ser a partir de amanhã. Experiências de assinatura prévia que dão viabilidade a projectos editoriais consistentes e originais, seja para descoberta de clássicos esquecidos seja para curiosidade de nichos específicos, também me parecem uma boa forma de aproximação directa entre quem edita e quem lê, e ainda que em escala reduzida podem abrir escapatória para impasses que a crise determinou. Cooperação institucional alargada para enfeixar meios necessários a publicações de mérito pode ser recurso para que domínios científicos ou artísticos em expansão não sejam travados ou eclipsados. (Eventualmente também, nova tentativa para que a leitura em suporte electrónico, de preço reduzido e eco-friendly se torne um hábito comum, mas isso nunca terá efeitos imediatos de resposta a uma crise.)

Que o imperativo de sobrevivência aguce em cada editor a originalidade da sua presença literária e gráfica, e o exame rigoroso da «economia do livro». Vendas directas podem criar empatias reforçadas, permitindo também que margens comerciais sejam convertidas em benefício para autores e produtores editoriais, depauperados como poucos. A luta continua!