Bruno Nogueira, o pornógrafo

Ensaio Vasco Macedo

Numa primeira instância, parece existir na pornografia uma procura do despir da realidade de uma narrativa ou de interposto terceiro. A pornografia teria uma relação directa com a empiria ou seria a última tentativa naturalista de nos mostrar a realidade das relações sexuais tal como elas são ou tal como deveriam ser. Por mais que os seus enredos possam dar a impressão contrária – se alguém neste mundo não as passar à frente em sôfrego fast forwarding –, eles são acessórios e vêem a sua funcionalidade como um mero degrau de apoio ao momento do coito. É nesse momento em que a sua especificidade enquanto género é concretizada, por ser nesse momento em que haveria uma recusa dos mandamentos estéticos e morais dos géneros que, entre outras coisas, não têm medo de se apresentar como puramente ficcionais. 

Não deixa de ser obscena e pornográfica a busca do real pela via dos directos, das stories, das house partiese de outros animais que tais. Há, nas salvíficas funcionalidades recentemente disseminadas por aplicações de redes ‘sociais’, a incorporação de um ideal democrático e de uma ideia de hiper-realismo. O ideal democrático concretizar-se-ia pela plena participação dos cidadãos da comunidade em iguais circunstâncias, de onde surgiriam, por exemplo, as diferentes histórias de self-made man. Por seu lado, o hiper-realismo é a ilusão de que o real se libertou da mediatização humana e que encontrou um meio para se expressar livre e totalmente, no sentido em que não está nem refém de um interposto de terceiro nem se expressa parcelarmente. 

O hiper-realismo tornaria desnecessárias tanto a representação como a criação de um discurso. Ao contrário do discurso mediado dos media, que influenciariam a representação da realidade com a sua própria interferência, os directos, as histórias e funcionalidades análogas conseguiriam suplantá-la. Estimulando um fetichismo voyeurista, estas diferentes aplicações dão-nos a ideia de que conseguem representar o ‘real total’: a realidade sem cortes, sem edição, sem enquadramento ou sequência previamente pensados, sem narrativização ou endoutrinação ideológica.

Ora, como qualquer feminista de algibeira – se não tiverem uma, podem sempre recorrer a qualquer pessoa de bom senso – vos poderá assinalar, não há produto mais ideológico ou ficcional do que a pornografia e não é de todo um acesso directo ao real em estado bruto. Primeiro, porque é um registo efectuado de actores, a palavra actores deve ser sublinhada pela óbvia performatividade a que sujeitam, performatividade essa que é análoga à que as ‘celebridades’ se obrigam a fazer quando estão ‘em directo’ para as suas audiências. Segundo, não deixa de ser um palco, é uma expressão de um determinado foco com todas as implicações estéticas, políticas e éticas que isso pode ter.

É neste sentido que este movimento dos ‘directos’ é essencialmente pornográfico, não pela exposição nua e crua do real, mas pela substituição do real por uma narrativa completamente ficcional e idealizada com a pretensão de ser o seu contrário. Se pensarmos, por exemplo, noutro fenómeno contemporâneo, como as fake news, entendemos que a sua deflagração depende da forma como conseguem seduzir os seus leitores com um magnetismo que vem desta busca da realidade não mediada, partindo da ideia de que os meios de comunicação convencionais escondem uma realidade pela via da mediatização que interpõem.  

A influência que estas funcionalidades demonstraram na construção da consciência colectiva do que se passou durante a quarentena não deixou de ter os seus problemas. Espelhando uma evidente questão de classe, são aqueles que têm a sua casa e sobrevivência asseguradas que assumem o papel de interlocutores e que criam a ideia de uma determinada comunidade que partilha um sensível comum, ao contrário dos trabalhadores que são obrigados a sair de suas casas para desempenhar os serviços chamados essenciais e daqueles que não têm casa ou cujas casas ofendem os ditames básicos das regras da convivência social. 

Desta forma, as redes julgam-se oceano, mas são apenas instrumentos de pesca de peixes gordos. Criam um circuito que se auto-alimenta da sua própria visibilidade e que, em vez de dar visibilidade ao ‘real’, ajudam a que ele imerja numa representação com bastantes fragilidades. Neste circuito, a visibilidade de uns gera a visibilidade de outros, tanto pelo apadrinhamento, como pela reprodução. A reprodução dá-se quando o jovem efebo aceita ser o clone do seu mestre para adquirir o estatuto (tipo instacelebrity) ou quando morde com veemência os tomates do mestre sabendo que isso lhe dá acesso ao palco e que, com os anos, se pode aburguesar, acabando por privar do mesmo meio (tipo nogueiriano).   

Honra seja feita aos méritos passados (que não foram poucos), os directos do Instagram de corpodormentefeitos por Bruno Nogueira tiveram uma lógica endogâmica estranha. Um enfant terrible que entra nos meandros do jogo da visibilidade dando palco aos que no passado tanto fez por criticar e satirizar, o que tragicamente acontece a tantos projectos que se apresentaram como vagamente usurpadores e zelotas, mas que acabaram por ser a concretização e afirmação absoluta do poder que pretenderam subverter.

Quando o Bruno liga à Mena para falar com os ‘migos’ Nuno Lopes e Tiago Rodrigues, e ‘lóle’, a brincar faz a gracinha de propor um espectáculo ao amigo que é programador do Dona Maria II, há, como dizer, um pequeno mal-estar proveniente do pudor que sentimos ao observar in loco uma cena íntima da qual não participamos. Nesse mesmo momento, usam a paródia (a gracinha, o momento ‘wtf tou ma cagar’ ) através do meio que seria responsável para nos dar a conhecer o ‘real total’ (a globalidade da realidade não mediada). Contudo, não conseguimos deixar de sentir que é a graça (enquanto narrativa dúplice que projecta para um outro horizonte para lá da sua literalidade) e não o conteúdo audiovisual proveniente do directo que representa o ‘real total’. Usam um médium hiper-realista que parece providenciar o ‘real total’ para fazer uma paródia, mas, em boa verdade, na terra dos compadrios, a paródia é que é o ‘real total’ ou, pior dizendo, obscenamente hiper-real.

P.S.: A hiper-realidade não existe, mas o compadrio sim.