Tu sabes para que serve um velho?

Crónica Ana Teresa Sanganha

(a alteridade…sempre a alteridade…)

Requiem do Mozart. Ah!… Os primeiros cinquenta e quatro segundos… tornava-os eternos. Dia Internacional do Trabalhador. Hoje é o meu quinquagésimo quarto dia em casa. Sorrio para dentro quando dou conta de que o número é o mesmo, o do segundo onde eternizava Mozart. Quase epifânico… quase. Sexta-feira. Dia de ir às compras, que rapidamente me tornei um robot da minha rotina. Goreti, a porteira. Enquanto estendo a roupa à janela, grita lá de baixo “olhe que a minha filha diz que o Lidl está aberto!” Penso: mesmo sendo o Primeiro de Maio. Revolta cá dentro. Decido fazer batota à consciência e boicotar as compras, na necessidade de me reconhecer na minha lealdade para com um princípio do Dia do Trabalhador, em que ninguém devia trabalhar, e acreditando já fazer parte da resistência ao arrastão, justificante e justificado, da crise. Fico orgulhosa de mim, durante também cinquenta e quatro segundos. Afinal não é batota. É fraude, mesmo. Irei lá amanhã… porque preciso. 

E com dolos lá sigo, à volta da dor. 

Escolhi trabalhar durante a quarentena. Escolhi… Riso interno, desta vez, irónico. Quero acreditar que sim. Tinha dois cenários: continuar a trabalhar, em casa, porque o meu trabalho mo permite. Ou parar de trabalhar, ficar em casa, porque o meu trabalho mo permite. Sorriso interno, outra vez: trabalho ou labor?! Não, gargalhada interna. Trabalhadora independente porque mais dependente. Levamos uma vida a querer separar estas duas, a independência e a dependência. Analiso as situações com a intensidade “vida ou morte”: tenho de continuar a trabalhar, as pessoas precisam de mim, eu preciso do dinheiro para viver. Vou parar, afinal preciso tanto de descansar e podemos perfeitamente interromper as consultas. Não sou paga, mas tenho uma excelente oportunidade para dormir, ler, cozinhar, ouvir música, ver filmes e beber vinho. Riso interno: vinho… a qualquer hora do dia, que não só à noite. 

Não aguento. Tenho de trabalhar. Como posso ficar a descansar quando tanta gente precisa de mim?! Riso interno: acredito eu. Quando as pessoas podem estar a sofrer, e agora que mais precisam, podendo ser eu a contribuir para a diminuição desse sofrimento. Sorriso externo, enquanto penso e decido: vai lá amparar-te no que amparas para que isso te possa perpetuar a validação da tua existência. Vai lá trabalhar para poderes ir ao Lidl, comprar toda aquela comidinha que não te engorde muito por estes dias em que vais, afinal, passar o mesmo tempo de outros dias, com o rabo na cadeira, a ouvir os prantos de quem, como tu, está confinado. Sozinha. Não estamos todos? 

E assim foi. 

A conversa é continua, para além dos pacientes e para além da garganta. De dentro para fora, de fora para dentro. De dentro para dentro e até de fora para fora. Hora após hora. Todos os dias. Ansiedade, a tortura de uns, tédio, a de outros. O trabalho retira tempo a alguns, a inércia retira vida a outros. Outros ainda nunca estiveram tão bem, com tudo o que precisam. E eles falam de si. É para isso que me pagam. Sou paga para os ouvir. E para os suportar na “queda”, momento em que puxo da palavra e, obviamente, do abraço. Critiquem-me agora. Sou paga para ouvir, sentir e pensar. Gosto de pensar que sou paga para amar… mas não o posso dizer em voz alta porque me vão cair muitos em cima… e já me chega ser filha única. 

Só que não há um segundo do dia em que não me interrogue sobre o facto de serem poucas as pessoas que me falam da sua preocupação com o estado actual do mundo. E de sexo. Praticamente ninguém me tem falado de sexo. Ao contrário dos directos do Instagram do Bruno Nogueira. Curioso, não é? Mas bate certo porque, na realidade, também não imagino o Bruno Nogueira a falar muito de sexo com uma terapeuta. Na verdade, todos falam de si e ninguém fala do outro. Não me choca, mas retira-me esperança… uma brutalidade destas a acontecer e só se fala de si. Sempre com a salvaguarda de que estamos em casa também pelos outros. Os grupos de risco. Mas não estamos todos? O verbo aprender na boca e todos com tanta dificuldade em olhar para o lugar de onde pode vir o ensinamento. Outra vez o Bruno: chegou aos sessenta mil, por experimentar sair de si. Sorriso interno: estou mesmo parva, armada em pedagoga. Mas toda a gente refere que o mundo vai ficar diferente. Uns crêem num mundo onde todos nos vamos amar muito mais, outros afirmam que a nossa liberdade acabou e que a depressão se instalará. Riso interno, sarcástico: mas vamos falar de liberdade quando a incapacidade de nos descentrarmos é a única coisa que prevalece? Achamos mesmo que o mundo vai mudar? 

Entre lamúrias, vou dizendo que podemos, neste confinamento, sentir tudo a que temos direito, e pensarmos o mundo que queremos, já, ontem. O ser humano que queremos ser amanhã, já, quando “isto acabar”. Sem sorriso interno: não vai acabar nada. Está a acontecer, já aconteceu e vai continuar, com a agravante de estarmos externamente cada vez menos livres e, com muita ira minha, que se fosse tristeza ainda mais força me retirava, internamente também… E é por isso que “isto” está a acontecer. 

O confinamento é a Caixa de Pandora. E, em tempos de redes sociais, deixa-nos a todos nus… E quem tem olho é rei. 

Como é que posso olhar para dentro sem sentir pânico? Como é que posso olhar para fora sem me ver por dentro? Risos, mesmo: o grande dilema da época corona. Onde a suspensão nos retira, dando, o consolo que nos restava por não durarmos para sempre, como disse Dagerman. Retira-nos o tempo, dando-nos o tempo. 

Quando ao mundo retiramos a capacidade de pensar, o que é que fica? 

Narciso na contemplação da sua figura. 

Assim vai o mundo onde este vírus penetrou. Um mundo omnipotente onde a vulnerabilidade pertence ao outro, que afinal nos é invisível e, portanto, podemos deixar cair. Não é tão incrivelmente paradoxal? O outro só existir no lugar da vulnerabilidade? E ao mesmo tempo precisarmos dele como repasto para a nossa omnipotência, que até dá dó, de tão primária… O lugar onde ficámos, desde o dia em que o trauma nos invadiu sem qualquer hipótese de nos defendermos… de tão pobremente sós que já estávamos… que até para a solidão é preciso outro.

(escolho o primeiro pronome pessoal plural porque não me interessa desmascarar a minha individualidade, mais conhecida, neste mesmo mundo, por arrogância)

E assim continuará o mundo, onde a incapacidade de ver o outro como parte sua, e ao mesmo tempo totalmente diferenciado de si, prevalece sobre a possibilidade de olhar a própria vulnerabilidade. A sua e do mundo. E a ausência de liberdade é aquela mesma em que negamos a existência do outro, diferente de nós, portador de coisas que não temos, diferentes das que temos, sem que isso nos aniquile até cegarmos pela vontade da sua destruição. 

Perguntam-me muitas vezes se quem não tem consciência dos seus actos, se não tem consciência de que não vê o outro, pode ser responsabilizado por isso. Costumo responder que a imaturidade, na infância, é uma possibilidade de crescimento, na adultícia, é uma arma de arremesso. Portanto, além de poder ser responsabilizado pelos seus actos, pode ser apelidado de mau. E é exactamente aqui que está o calcanhar de Aquiles do mais mau de todos, o perverso narcísico. Para lá do simples narcísico, do qual todos temos um pouco, uns mais, outros menos, pois claro. O perverso narcísico, mesmo que deseje ser mau, agindo como se todos os actos fossem defensáveis e defensivos, tem a bondade de notar quando o consegue. E é aqui que, neste instante, porque só instante mesmo, fica eternamente preso na sua condição: um narcisista ressentido com cada segundo em que não recebe atenção e que, por isso, nunca conseguirá escapar àquilo que é. E, também por isso, nunca conseguirá provar do que tanto deseja, a liberdade interna. E será tanto mais psicopata, quanto menos obstáculos e limites encontrar para atingir os seus fins. Portanto, não os vê, mesmo que sejam de carne e osso. 

Voltando a Dagerman, “o que é perfeito labora em estado de repouso”.

(também no primeiro pronome pessoal do plural: ao responsabilizarmo-los, já lhes estamos a conferir a autonomia para pensar, já lhes estamos a mostrar o caminho para a liberdade)

Pensar, ao contrário de ruminar, implica escolher, o que implica perder. Fazer uma escolha, sabendo que essa escolha implica uma perda, e assumi-la é não precisar de ter tudo no mesmo lugar, é não precisar de devorar tudo e todos. É saber diferenciar-se dos outros, como parte integrante deles. É saber que não chegamos onde todos chegam, mas que chegamos onde bastamos. É gostar, e não precisar. É ter medo, ao contrário do que diz a Nina, “no fear!” Não, “no panic!” E isso é a Liberdade.

O poder da ilusão esmaga a liberdade, mas a desilusão, pérfida, impõe-se, dolorosa e, aparentemente paradoxal, devolve-no-la. 

Como afirmava a Alexandra Silvestre no outro dia, a única coisa de que temos certeza é desta incerteza que se vive. E não foi sempre assim?  

Ontem, o psiquiatra Luís Patrício, numa webinar da Sociedade Portuguesa de Psicossomática (bem-vindos ao futuro), dizia que existem dois tipos de verdade, a verdade da conveniência e a verdade da realidade. Na vida, temos de escolher uma delas, sabendo que a saúde mental não acontece na primeira.  

Todos sabemos a verdade que temos escolhido. 

“A relação é que faz a imunidade” partilhava a Patrícia Câmara comigo, também no outro dia. 

Rilke escreveu: “Nós estamos mesmo no principio, vê tu. Como antes de tudo. Com mil e um sonhos atrás de nós e sem acto.” E também: “Deixa que tudo te aconteça, beleza e terror. E continua. Nenhum sentimento é último”. 

“Tu sabes para que serve um velho?”  

Um velho somos nós. Somos um velho no futuro do nosso passado, somos um velho no futuro do nosso presente.  E servimos para honrar o nosso lugar e não nos sujeitarmos à submissão.  

Só é são quem é livre. Só é livre quem vê o outro.

Eu?! Eu não perdia, por nada, tudo isto que está a acontecer. 

(e tenho muitas saudades tuas, muitas)