21 de Março – Postal

Crónica+Desenho André Carrilho

Ainda dentro do carro ajusto a máscara e verifico se tenho tudo. Com as luvas não é fácil manusear as coisas dentro dos bolsos, os movimentos ficam um pouco menos instintivos, mais perros. O pequeno minimercado está vazio, como se estivesse à minha espera. É um grande contraste com a fila que já serpenteava no exterior do Olivais Shopping, cobiçando acesso ao Pingo Doce escondido lá dentro.

À porta da loja leio o aviso “Só uma pessoa de cada vez”. A senhora sorri, descontraída. Encho logo o cesto de muitas verduras e do que me consigo lembrar. Sinto a necessidade de lhe dizer “Sabe, é para a minha mãe, pediu-me coisas para fazer sopa”, como que a justificar-me por levar tanta coisa. A senhora coloca-se atrás da caixa e começa a pesar os legumes, sempre tranquila e sorridente. Nem parece que o mundo que conhecemos toda uma vida está em risco de desaparecer. Os pequenos sons do plástico dos sacos, da balança e das teclas da caixa, dos pássaros lá fora, das leves fricções quotidianas que parecem ser tão mundanas, estão agora isoladas num silêncio avassalador. Pergunto-lhe “faz entregas ao domicílio?” “Fazemos sim, mas só à tarde, na medida do possível, sabe? Fazemos o que podemos”. É só ela e o marido, que sai detrás do balcão das carnes frias e me assegura que sim, pedindo que “diga à sua mãe que se precisar é só ligar que eu passo lá à tarde. Posso demorar um pouco mas eu consigo entregar.” “Sempre no próprio dia?” “Oh sim, no próprio dia, pois claro!”. Apontando a superfície da balança, faço à senhora, que pega em tudo com luvas, uma pergunta que o pudor sempre me impedira de fazer. “E isso, também é desinfectado?” “Ai sim, claro! Até por nós, sabe? Estamos aqui todos os dias… Enquanto houver saúde.” De repente enchi-me de gratidão por estas pessoas. Não podem fazer mais nada senão continuar, mas fico com a sensação de que o fazem também porque se sentem necessários. Sentem que podem fazer o bem. E não dá jeito a um cartunista cínico de meia-idade que de repente a humanidade se revele digna de sentimentos lindos de postal. Balbucio atabalhoadamente, desajeitado e fora de carácter, “hum, vocês são importantes… e todos nós lhes devemos um grande obrigado.” E suspeito, porque me farto de desenhar caras, que a senhora da caixa percebeu pelo meu olhar que eu estava a sorrir-lhe, por baixo da máscara.

Toco à porta da minha mãe e afasto-me, pousando o saco do laptop, com skype devidamente instalado, três jornais do dia e saco de compras. Ela abre a porta, surpreendida com tudo isto, parecendo ainda não estar habituada a uma normalidade tão inclinada para o abismo. Quer dar-me dinheiro. Eu nem preciso responder. Tiro a máscara para que me veja a cara, para que tudo se conserve um pouco como sempre devia ser. Digo-lhe para tirar as compras do saco, que eu levo de volta. “Estás bem, mãe?” Ela responde como se fosse uma pergunta quase absurda. “Sim, mas tenho saudades dos meus netos.” “Eles também têm saudades da avó, quando lhes apetece. Ou quando não estão ocupados a infernizarem-nos a vida.” Olhamo-nos sem ter mais nada para dizer. Ela não quer fechar a porta, mas é uma pessoa demasiado prática para se dar a dramatismos. Só que eu tomei uma decisão. De agora em diante quero esforçar-me por dizer tudo o que tem de ser dito, para que nunca haja dúvidas. “Também tenho saudades tuas, mãe.” De olhos muito abertos, ela começa a fazer aquela expressão aquosa que lhe vi primeiro quando parti para o Nepal, com dezassete anos, viajando pela primeira vez para longe da asa dela. E lá fecha a porta.

Chego a casa, tiro os sapatos à entrada e esfrego as mãos com e sem luvas. Da sala vêm sons de galhofa e birra. A Elga tinha organizado com a escola dos putos uma sessão de videoconferência, para que todas as crianças pudessem desenhar juntas, como costumavam fazer. Sempre embrenhado nos problemas do mundo, que tenho constantemente de traduzir em forma gráfica, com a mente em eterno pingpong entre deadlines e punchlines, as actividades da minha mulher muitas vezes passam-me ao lado, como um confortável pano de fundo. O que ela combinou nunca me ocorreria fazer, mas vejo agora que é necessário. Ali estão os três, ela ao centro a sorrir para o ecrã do laptop, e as duas crianças a seguir-lhe a deixa, com papel, caneta e curiosidade. No ecrã, um mosaico de pais e filhos mostra a mesma cena repetida, o mesmo esforço colectivo para que os nossos filhos vejam o mundo como ele deve ser, em que o isolamento tem de ser combatido, mesmo que aceite fisicamente. E o riso contagiante da minha mulher, que a todos chamou à acção, foca a minha atenção em todas as razões por que me casei com ela.

Sem perder mais tempo vou tomar banho. Escondido debaixo do chuveiro ponho-me a pensar nestas mulheres todas, nas mães, no olhar das crianças que se põem nas mãos dos pais para serem guiadas, no silêncio da rua e das estradas vazias, em todos os que ainda se juntam apesar da distância, nos merceeiros a acordar de manhã porque a manhã continua a vir, na força que se revela em quem fica de repente vulnerável, no sol de Março que continua a entrar pela janela e se reflecte nos cabelos dos meus filhos, colocando o sorriso da Elga em contraluz.

E fui-me abaixo.

Depois recompus-me, limpei os olhos, a cara e o corpo. Sentei-me à mesa com a minha família e comecei a desenhar.