No atelier

Desenho+Poesia Nuno Viegas

Vista do atelier com auto-retrato de 01/05/20 a secar no chão

Sou um exílio como uma solene palavra,
todas as transformações à beira das mãos,
a espessura do silêncio e o magnetismo da vontade,
a hierarquia dos corpos determina-se na necessidade
de ter um corpo e o eu o primeiro desenho dessas fronteiras.
O corpo tem extensões infinitas.
Aquele rio, aquele burburinho, antes de mais e se houver mais,
corre dentro de mim
ou para dizer de outro modo, sou ou somos
para alargar mais ainda a vastidão onde ele corre.
O seu fluxo é tão extra corporal
como a sensação do pulsar sanguíneo nas minhas veias.
Somos nós que fracturamos o contínuo.
E vivemos partidos aos bocados.
Divididos. Separados.
E até parece uma grande invenção, um verdadeiro milagre,
quando dois, mesmo que sejam somente dois fragmentos
se encontram e se unem
e se desfragmentam.

Auto-retrato de 30 de Abril de 2020 colado sobre “Fine powder machine”

Momentos contados,
o cachimbo longilíneo para acentuar a figura
e a pausa estratégica para chegar com as costas
às costas da cadeira que por sua vez vai ganhando
pêlo de gato
e desmaia a sua cor e esburaca o seu tecido
que a poltrona é também afia-unhas.
Vou buscar o isqueiro e vou matando o tempo
com unhas de matar pulgas.
O horizonte tão próximo e delineado
como o desenho das minhas unhas.
E nem sempre as entranhas fervem
nesse bilioso cozinhado de tripas.
Por vezes a panela também tem tampa.
Estranha a ergonomia do fumador,
é como conservar uma caneta na boca.
Insisto no tabaco torrado até ao fim.
O que fazer com este espaço todo,
onde reter a vista,
se nem a passarada encontra sítio para pousar,
no céu aberto apenas se pode voar.
Os trompetes esganiçam-se ali no quarto
ou serão os saxofones que os meus ouvidos
indiferenciam?
Agora esta marcha de libélula,
isto se as fadas marchassem.
A máquina de lavar de birra na despensa.
Quando acendo uma luz junto de mim
a paisagem perde profundidade.
Tão vão
como procurar estrelas com uma lanterna.
Continua a birra mecânica arrastada nos rodízios.
De si para si julga que trabalha.
O pensamento é que vai enumerando os factos
e fazendo uma colagem com dedos às tiras
de fita-cola,
vai afixando imagens com pioneses e engalfinhando,
atrapalhando os sentidos.
O ciclo da lavagem terminou
e por vezes a vida é tão agitada como isso.
É difícil saber se a música é mesmo assim
ou se é o leitor a patinar no disco,
ou se é o motor que está a torcer a fita da cassete
ou se embicou numa espécie de loop neste caso
da bateria.

Vista do atelier com auto-retrato de 05/05/20

Debaixo deste sol sabias que tinhas sido feito para ele,
preparado ancestralmente,
invejavas o banho dos gansos porque eles sabem o que é natural,
ou então não sabem e o natural é isso, não constituir para eles um problema.
Sentado numa cadeira que tem apanhado mais sol que tu,
a sombrear um carreiro de formigas e cuidado para não fazer
movimentos bruscos que perturbem as investigações das vespas,
sons que acabaram de ser inventados para desafiar os teus ouvidos,
há um martelo contra o ferro, um banho do gangue dos gansos naquela bica,
pezinhos de pantufas daquela senhora de chapéu,
a conversa reverberada dos gansos,
a sua voz parece o eco das marteladas,
água a correr por trás das janelas, o deslizar de rodas no asfalto,
contra as moscas não é preciso ter maneiras,
pássaros, esses sabem esconder-se, ser inúmeros, incontáveis,
parecerem naturais como o silêncio,
cães ainda esses a ladrar para dentro duma lata longe,
se isto era o meu telefone a tocar está muito bem camuflado.
Quanto tempo dura o rasto dos aviões, está ali desde que acordei,
pelo menos a sua última parte, deve ser alguém com um toque igual ao meu
ali dentro da capela sem ninguém ou pelo menos
alguém com um toque igual ao meu não faço ideia para quê.
Sou um receptor e neste ambiente as palavras não chegam a tocar nas coisas.
Endireito as costas e sinto os estalidos dos meus ossos juntar-se à orquestra.
Tenho estado na escuridão de um frigorífico a ter luz de frigorífico
quando a porta abria, mas aqui a luz não conserva, aqui a luz observa.

Vista do atelier com auto-retrato de 25/04/20