Primeiro dia de viagem

Crónica+Desenho Isabel Olivença, Rui Olivença

Nestes tempos de pandemia as casas transformaram-se em abrigos, não tanto lares a que desejemos regressar. A vida em suspenso no abrigo permite-nos alguma deambulação pelo corredor – toc…toc…toc… em direcção à cozinha, depois a sala, a varanda, o quarto, e de novo a varanda, a sala, a cozinha… ai, esqueci-me, e voltamos atrás sem lembrança do objetivo quanto mais do destino. Na vida em suspenso, por vezes, pensamos naqueles que na linha da frente zelam pelas nossas vidas e batemos palmas, pensando «que heróico é o seu trabalho» e, de imediato, nos ocorre «coitados de nós, para aqui confinados e sós». Na vida em suspenso olhamos desconfiados as janelas, não vá o insidioso COVID-19 (Coronavirus Disease 2019) entrar pelas frinchas. As travessias inúteis pelo abrigo dispersam a atenção e a energia; ouve-se Led Zeppelin em alto som para espantar o tal bicho, tricota-se um cachecol, faz-se bricolage, escreve-se um poema místico (ave maria nos salve), telefona-se à mãe, ao filho, ao vizinho, entra-se nas redes sociais até que o nosso cérebro pife, segue-se o noticiário na televisão e mais um dois, três, quatro episódios de uma série na Netflix, e ainda se lê Kerouac – Pela Estrada Fora, noite adentro. No dia seguinte, a ressaca da insónia, e exactamente quarenta dias depois de declarado o estado de emergência declara-se no abrigo o estado de apatia. Continuámos a hibernar e o equinócio da primavera já aconteceu há um mês. Quem diria! O que nos poderá salvar do torpor se nem sequer há possibilidade de viagem à vista? Vive a tua memória e assombra-te, escreveu Kerouac no dito livro. Poderá ser isso, a partir de agora, o estímulo para acabar com a letargia – o registo de memórias de viagens. Para tal, há que ir ao baú das recordações, onde se cristalizaram eventos, que escolhemos consciente ou inconscientemente, e evocá-los, deixando escapar o que não nos espanta, ou seja, tudo o que é dica para turista, tipo: onde comer, onde beber, onde dormir, onde usufruir de uma massagem, em que praia dar um mergulho sem levar com ondas de alforrecas, etc. Das viagens temos reminiscências de paisagens profundas, de pedras com o peso da história, de lugares de passagem, de pessoas desconhecidas que nos sorriram, de improváveis sensações de calor ou frio, de cores e atmosferas a impregnarem-nos a mente com fantasias, de deliciosos cheiros e sabores de comida, de dias com estados de espírito contraditórios. Este é um trabalho de filigrana e não pode ser apressado. Fernando Pessoa que o diga, quando numa das suas viagens interiores se entrincheirou em Álvaro de Campos e resolveu ir ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, 

ao luar e ao sonho, na estrada deserta,

sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco

me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,

que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,

que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,

que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…

(…)

Em junho de 2019, a.C. (antes do covid), quatro amigos lisboetas armaram-se em cavaleiros do asfalto e realizaram uma viagem de automóvel pela Europa, durante vinte dias, não num Chevrolet, mas num utilitário, a que carinhosamente chamámos de «flecha vermelha». Para esta tarefa pedi a parceria do meu parceiro: ele escolhe fotografias da viagem e transforma-as num postal pintado a óleo sobre papel canson, de seguida, eu ilustro a cena com palavras. 

Eis que surge a primeira memória do primeiro dia de viagem: 5 de junho, chegados a Salamanca: Helena escolhe uma mesa na esplanada semi vazia da Plaza Mayor. Senta-se, entrelaça as pernas e aconchega-se ao seu corpo. Pasme-se! As calças são de um verde-relva provocante, embora o pintor lhe tenha debotado a cor, por motivos que só ele conhece. A bainha enorme cravejada de pseudo pérolas grita-lhe: – deixa-me afagar as tuas pernas, não te envergonhes de mim, – ao que Helena responde: – não sejas kitsch! –