Freud a caminho de Roma: uma inibição?

Ensaio António Mega Ferreira

A minha atração por Roma é profundamente neurótica
Sigmund Freud

         A abarrotar de referências clássicas, que lhe assombraram os sonhos e iluminaram a escrita, o dr. Sigmund Freud alimentou, desde muito novo, o desejo de visitar Roma e Atenas. Na segunda, em 1904, experimentou uma espécie de black-out que lhe provocou uma “perturbação da memória”, segundo conta numa carta que enviou ao escritor Romain Rolland em 1936, quase no final da vida; a Roma demorou a chegar, porque, tendo arribado em setembro de 1897 às margens do lago Trasimeno, a menos de 200 quilómetros da antiga capital imperial, deu meia volta e foi acolher-se às sombras familiares e protetoras da sua Viena de adoção. Este episódio, descrito como uma inibição, encontra o seu lugar, com maior ou menor relevo, em grande parte das biografias de Freud, mas é omisso em obras de outro fôlego e algum distanciamento crítico, como as de Max Schur ou Elisabeth Roudinesco.

         Freud decidira partir para Itália no verão de 1897, em plena turbulência intelectual e emocional. Perdera o pai, Jakob, em outubro do ano anterior, “a perda mais dilacerante que um homem pode sofrer na vida”; a sua defesa da etiologia sexual das neuroses perante os confrades da Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena saldara-se por um fracasso evidente; afligiam-no perturbações cardíacas e gastrointestinais; angustiava-o a crescente onda de antissemitismo que grassava na cidade e no resto da Áustria, com reflexos negativos na evolução da sua carreira académica. Além disso, numa carta para Wilhelm Fliess, o seu discípulo, correspondente privilegiado (até 1904, data em que se consuma a rutura entre os dois)[1] e câmara de ressonância das suas “descobertas”, datada de 14 de agosto de 1897, Freud confessa estar “torturado por graves dúvidas no que diz respeito às neuroses (die Neurotik)”. Em crise está então a sua “teoria da sedução” (um “conto de fadas científico”, segundo Krafft-Ebing), pela qual vinha a sustentar que os fenómenos neuróticos têm sempre na origem uma agressão sexual paterna ou de outro familiar. Mas os casos de neurose por ele conhecidos em Viena são tantos que é impossível a ideia de um tão grande número de agressores: Freud começa a acreditar que à ideia de uma intervenção material, física, concreta, de outrem convém substituir a noção de uma “realidade psíquica” do paciente. E, sendo assim, desloca o foco da sua investigação da relação direta entre pai e filho para a reconstituição do recalcado pela criança durante a sua idade infantil. O que passa a estar em causa é “não o desejo do pai, mas a criança como ser de desejo”, como diz Elvio Fachinelli.[2] Por assim dizer, da perversidade alheia volta-se para a história da vida do paciente. Para testar a sua nova proto-teoria, o passo seguinte é erigir a autoanálise, à qual começara por chamar “auto-observação” e na qual se iniciara no ano anterior, e a interpretação dos sonhos (“o sonho é a concretização de um desejo”) como “métodos” para “reconstruir” cenas de infância suscetíveis de darem origem à criação de representações imaginárias e fantasiosas. Consciente da sua própria neurose, vai mergulhar dentro de si, à procura dos mínimos traços de “traumas” inscritos no inconsciente desde a primeira infância. O que ele fosse capaz de encontrar em si seria útil para compreender as neuroses alheias. “Estabelece, assim, a sua teoria do fantasma, admitindo que, perante as necessidades do seu desejo inconsciente, uma pessoa pode construir por si só um fantasma de sedução, sem que tenha havido qualquer facto real que o fundamente”, sintetiza o psicanalista François Ansermet[3]. O “complexo de Édipo”, que é corolário deste novo período (vertiginoso) da sua pesquisa, será pela primeira vez aflorado, através da leitura de Édipo-rei de Sófocles e de Hamlet de Shakespeare, na carta a Fliess de 15 de outubro, poucas semanas depois de regressar da sua abortada viagem a Roma. Para Freud, ainda que não tenha entrado em Roma, “incipit vita nuova”. A paragem à beira do lago Trasimeno coincide, tudo o indica, com o clinamen da sua consciência psicanalítica.

A viagem desse ano não era a primeira que Freud fazia a Itália. A partir de 1895, ganhara o hábito de todos os anos descer até à Península, desvendando, um a um, os mistérios de um país que era para ele um objeto de fascínio: no primeiro ano, foi a Veneza; no segundo, visitou longamente a Toscana; no terceiro, este de 1897, começou em Veneza e veio descendo até se deter na Úmbria, de onde talvez contasse partir para Roma. Mas fez a agulha para norte, em vez de rumar ao sul. Porquê? Que força poderosa ou capricho inconsequente o levou a comprometer o objetivo último da viagem? “A minha atração por Roma é (…) profundamente neurótica”, tinha escrito a Fliess, poucos dias antes do início da viagem. Sem dúvida, mas de que forma? Se Roma se insinua com frequência nos seus sonhos, até mesmo em substituição de outra cidade, que lhe surge no relato onírico como travestida de Roma, porquê negar-se a enfrentá-la na realidade, agora que se encontra a dois passos? Como agiu Roma no processo de construção teórica do dr. Freud? Bloqueador? Ou catalisador? Para entendermos o episódio do Trasimeno, teremos de vasculhar nos resíduos pré-históricos da sua infância e primeira adolescência. Com um senão: ainda e sempre, é pela mão e pela escrita de Freud que somos forçados a conduzir a inquirição. A primeira etapa desta pesquisa passará sempre pela leitura da sua correspondência com Wilhelm Fliess; estamos ainda e sempre no território subjetivamente minado do discurso freudiano, jogando com as regras que ele estabelece, apertados entre os limites que ele assenta para a sua pesquisa, uma autêntica arqueologia pessoal. Como não há outro remédio, nem melhor fonte, sigamos por aí.

         A correspondência com Fliess é uma vasta coleção de 284 cartas de Freud, escritas entre 1887 e 1904, cujas respostas quase não conhecemos, porque a filha, Anna Freud, guardiã dos tesouros e dos segredos do doutor de Viena, as mandou queimar. Salvaram-se do auto da fé freudiano três cartas de Fliess. É, por isso, praticamente, uma “correspondência” unidirecional, onde as dúvidas, as inquietações, as pesquisas e as teorias de Fliess apenas nos são reveladas indireta e parcialmente, pelas referências que a elas faz Freud nas suas cartas. Para o que nos interessa aqui, no entanto, é quanto nos basta. As referências à viagem a Itália (e a Roma) ou estão nestas cartas ou não existem de todo. 

         De facto, a menção à viagem de verão a Itália surge, pela primeira vez, numa carta de 20 de julho de 1897: “Os nossos projetos de viagem mudaram. A Úmbria e a Toscana em vez de Nápoles e, antes, Veneza com Marta [Bernays, sua mulher]”. Nenhuma alusão a Roma, como se vê (a viagem a Nápoles incluiria, quase necessariamente, a visita a Roma). Freud procura propiciar um encontro entre as duas famílias, embora o seu objetivo seja encontrar-se à viva força (é o que se deduz da leitura das suas cartas, toujours plus pressantes) com Fliess, que era praticamente o seu único auditório. Daí, a 5 de agosto, uma primeira precisão, desta vez comunicada a Ida, mulher de Wilhelm Fliess: “a 26 ou 27, começam as férias do meu irmão [Alexandre, dez anos mais novo] e portanto a viagem de três semanas a Itália”. E acrescenta: “Mas uma mulher dificilmente se conforma com o calendário geral; em atenção ao seu calendário particular, devo partir sozinho com ela [Marta] oito dias antes, o mais tardar a 21 ou 22, e fazê-la voltar para casa a 1 de setembro”. No dia 8, em carta a Fliess, confirma a partida a 21 de agosto e insiste na vontade de se encontrar com ele “nos próximos 15 dias”. Seis dias depois, no entanto, conclui que o encontro não será possível, “por não querer forçar as coisas”, visto que não conseguem acertar datas, de forma a ele poder estar de volta a Viena no dia 20 de setembro. A 18 de agosto, em nova carta, dirige-se a Fliess: “Já te disse, por acaso, que Nápoles foi abandonada e que a viagem nos vai conduzir a San Gimignano-Siena-Perúgia-Assis-Ancona – ou seja, à Toscana e à Úmbria?”. De facto, a 6 de setembro escreve de Siena uns “modestos sinais de vida da minha viagem”: “De Veneza (onde recebi a tua carta), passando por Pisa, Livorno, até chegar aqui.” E, a seguir: “Próximo destino Orvieto, até lá San Gimignano.” Depois disso, silêncio. No dia seguinte ao regresso a Viena, a 21 de setembro, escreve uma longa carta a Fliess, onde lhe anuncia: “Deixei de acreditar nas minhas neuroses”. A carta é longa, já se disse; mas, ao contrário do que prometera no bilhete enviado de Siena (“terei muitas coisas para te contar”), nem uma palavra sobre Itália, sobre Roma ou sobre o lago Trasimeno.

         A partir daí, as cartas de Freud ocupam-se quase exclusivamente com o resultado das suas pesquisas e “descobertas”. A 15 de outubro, fala pela primeira vez do complexo de Édipo, que será a grande conquista da sua análise, carta que constitui, pela riqueza do seu conteúdo, um ponto de viragem crucial no método analítico de Freud. A palavra Roma só volta a surgir na correspondência para Fliess a 3 de dezembro, na qual admite o caráter neurótico da sua atração pela antiga capital imperial: “Essa [atração] está ligada ao meu entusiasmo de estudante de liceu pelo herói semita Aníbal, e este ano, tal como aconteceu com ele, também eu não fui do lago Trasimeno a Roma.” Freud ainda não nos fala de inibição ou do complexo feixe de reticências que o impediu de ir a Roma. Apenas anota a coincidência com o comportamento de Aníbal. Mas este laconismo encobre uma narrativa posterior, muito elaborada com origem em recordações de infância, que vai trazer a lume mais tarde. Não antecipemos, no entanto.

Quando regressa a Viena, em setembro de 1897, Freud trabalha afincadamente em dois livros que constituirão um marco na sua bibliografia psicanalítica: A Interpretação dos sonhos, que vai concluir em finais de 1899, e Psicopatologia da vida quotidiana, talvez o seu livro mais popular, que sairá dos prelos em 1901. Antes da publicação destes dois títulos, a fama de Freud era mais duvidosa do que consagrada. Além disso, quando empreende a viagem a Itália, o edifício teórico que procurara esforçadamente erguer está em vias de desabar. Ele já exprimira dúvidas quanto à sua teoria da etiologia das neuroses; no regresso, vai pura e simplesmente renegá-la. Neste momento de transição da sua carreira, Freud não se vê a si mesmo como um vencedor. Pelo contrário, queixa-se amargamente da incompreensão dos seus pares, das barreiras que impedem o seu acesso a um posto de ensino na universidade, da magreza dos seus recursos económicos, das dúvidas que o assaltam quanto à cientificidade das suas teorias. Pode bem ser que, chegado às margens do lago Trasimeno, lhe tenha ocorrido o precedente de Aníbal, cujo exemplo iluminara as suas fantasias adolescentes (curiosamente, os heróis de Freud eram quase sempre chefes militares): tendo jurado vingar o pai, Amílcar Barca, Aníbal galgou os Pirenéus e os Alpes e, por montes e vales, levou a sua fúria guerreira vingativa até ao coração do Império Romano. Deteve-se à beira do lago Trasimeno, na Úmbria. Esta renúncia a conquistar Roma valeu-lhe a censura de um dos seus generais: “Sabes bem como ganhar, mas não o que fazer com a tua vitória.” Freud lembrava-se da referência histórica; resgatou da sua memória infantil o episódio em que o pai lhe contou como se vergara uma vez à ordem antissemita infamante dada por um cristão na sua aldeia natal; identificou o seu desejo de vingança por esta humilhação com a atitude do general cartaginês; e elaborou uma explicação que o colocava em pé de igualdade com uma figura histórica de primeira grandeza. Fê-lo no capítulo V de A Interpretação dos sonhos, publicado em primeira edição em 1900. A partir daí, os seus discípulos, seguidores e hagiógrafos procederam por uma espécie de “condensação” (“uma representação única representa por si só várias cadeias associativas”[4]) e deram gás à fantasia de uma inibição específica incapacitante – embora saibamos, pela correspondência citada, que Roma nunca esteve nos seus planos de viagem do verão de 1897. Se inibição existia, ela era mais ampla do que uma simples entrada em Roma: era a inibição de conceber entrar em Roma, por nem sequer ser ainda um vencedor.

É por isso que a psicanalista e escritora Elisabeth Roudinesco[5] não refere o episódio de 1897, já que naturalmente não lhe dá crédito. E Max Schur, tão meticuloso na reconstituição dos episódios biográficos com impacte relevante na obra de Freud, também não.[6] Com toda a probabilidade, Freud não foi a Roma em 1897 porque simplesmente Roma não estava nos seus planos de viagem; mas, chegado às margens do Trasimeno, ocorreu-lhe a analogia com a renúncia de Aníbal e viu nessa coincidência uma confirmação da sua neurose. Sigamos o exercício freudiano, tal como aparece de forma literariamente envolvente (Freud era um excelente escritor) no referido capítulo de A Interpretação dos sonhos, dedicado aos “Materiais e fontes dos sonhos” e escrito provavelmente durante o ano de 1898:

“Noutro caso, anoto o facto de que, embora o desejo que estimula o sonho seja um desejo contemporâneo, é no entanto claramente reforçado por memórias da infância. Refiro-me a uma série de sonhos que se relacionam com o meu anseio por ir a Roma. Por um período talvez bastante longo terei de me contentar com satisfazer este anseio através dos sonhos, já que, na época do ano em que eu poderia viajar, devo evitar ir a Roma por razões de saúde.[7] (…) Durante a minha última viagem por Itália, que me levou para lá do lago Trasimeno, descobri por fim, depois de ter visto o Tibre e de ter feito marcha atrás com relutância a uns oitenta quilómetros de Roma, o reforço que o meu desejo de ver a Cidade Eterna recebera de algumas recordações da minha infância. Tinha acabado de planear uma viagem a Nápoles via Roma para o ano seguinte, quando me ocorreu esta frase, que eu devo ter lido em algum dos nossos clássicos alemães: “Fica por saber qual dos dois deu mais passos para trás e para diante naquela sala, depois de ele ter concebido o projeto de ir a Roma – se o vice-reitor Winckelmann, se o grande general Aníbal.” Eu mesmo seguira os passos de Aníbal; tal como ele, também eu estava condenado a nunca ver Roma, também ele tinha seguido para a Campânia quando todos o esperavam em Roma. Aníbal, com o qual eu tinha atingido este ponto de similaridade, fora o meu herói favorito durante os tempos de liceu; tal como muitos rapazes da minha idade, eu alinhara as minhas simpatias nas Guerras Púnicas não com os romanos, mas com os cartagineses. Mais ainda, quando finalmente tive consciência das consequências de pertencer a uma raça estrangeira, e fui forçado pelas posições antissemitas dos meus colegas de escola a tomar uma posição firme, a figura do general semita assumiu proporções ainda maiores na minha imaginação. (…) E assim, o desejo de ir a Roma tornou-se na minha vida onírica máscara e símbolo de anseios calorosamente alimentados, para a realização dos quais se tinha de trabalhar com a tenacidade e obstinação do general púnico, ainda que a sua concretização parecesse por vezes tão remota como o desejo perene de Aníbal de entrar em Roma.”[8] (sublinhados meus)

         Para completar o quadro, falta apenas a “cena originária” desta reconstrução: quando tinha “dez ou doze anos”, conta Freud, o pai Jakob contou-lhe um episódio que ocorrera há muitos anos, quando ainda vivia na aldeia natal, Freiberg in Mähren, na Morávia. Tendo comprado um chapéu novo, Jakob viu-se um dia acossado por “um Cristão”, que lho arrebatou e lançou para a valeta, gritando-lhe: “Judeu, sai do passeio!” Freud, o filho, quis saber como o pai tinha reagido; e Jakob, conformado, respondeu-lhe: “desci do passeio e apanhei o chapéu”. Freud localiza ainda neste episódio a sua identificação com Aníbal, cujo pai o obrigara a jurar que se vingaria dos romanos. Mas nunca fala em vingança, apenas em génese de uma adoração, pelo que as efabulações tardo-românticas de alguns dos seus hagiógrafos sobre a renúncia a entrar em Roma como sinal da inibição (em Aníbal e em Freud) “de ir além do Pai” parecem despropositadas. Fazem parte da “lenda freudiana”, mas não são material credível de reconstituição biográfica. Em termos simples, naquele momento o jovem Sigmund teve vergonha do pai. As razões da abstenção de Aníbal são de outra ordem, política e militar. Tudo o resto é literatura.

Mas para o que aqui nos interessa, há duas ou três passagens do excerto dado acima que merecem ponderação. Em primeiro lugar, Freud, notório hipocondríaco, dá como razão para a sua renúncia a ir a Roma em 1897 a circunstância de “na época do ano em que eu poderia viajar, [dever] evitar ir a Roma por razões de saúde.” Depois, afirma que à data da escrita de A Interpretação dos sonhos (1898/99) “tinha acabado de planear uma viagem a Nápoles via Roma para o ano seguinte.” Enfim, que para a satisfação dos seus anseios mais firmes, há que “trabalhar com a tenacidade e obstinação do general púnico.” O que nos dizem estas passagens aqui destacadas? Que, em 1897, Freud temia as condições existentes em Roma que pudessem comprometer a sua saúde e que esta era a causa primeira da sua abstenção; que estava a planear (agora, sim) para o ano seguinte uma viagem a Nápoles com passagem por Roma, onde ainda não tinha ido; depois, que o “ponto de similaridade” com Aníbal era o facto de ambos se terem detido nas margens do lago Trasimeno; por fim, que ainda se considerava longe dos feitos realizados com “tenacidade e obstinação” pelo seu ídolo cartaginês.

Após a publicação de A Interpretação dos sonhos e Psicopatologia de vida quotidiana, no entanto, as condições mudam. Talvez Freud se sinta agora um pouco “conquistador”, como dissera uma vez, em tom faceto, a Fliess. Ganhou, pelo menos, uma segurança em relação aos “avanços” da sua teoria, que cada vez mais se cristaliza em torno do conceito de “complexo de Édipo”, a amadurecer durante alguns anos. E, por tudo isto, começa a encarar seriamente a viagem a Roma. Em 23 de outubro de 1898, escreve a Fliess que anda a estudar a topografia da Cidade Eterna, “porque este desejo [de Roma] me atormenta cada vez mais”; em fevereiro do ano seguinte, imagina encontrar-se com Fliess na Páscoa, em Roma; em julho fala uma vez mais no projeto de Roma, que começa a tornar-se recorrente na correspondência; volta à ideia de irem passar a Páscoa em Roma (presumivelmente em 1900) em carta de 27 de agosto de 1899; em 12 de fevereiro seguinte, confessa estar “mais distante de Roma do que nunca”. 

Roma tornara-se, entretanto, nas cartas para Wilhelm Fliess, a palavra-passe da impossibilidade de se encontrarem (“não vês que Roma não se deixa tomar pela força?”). Mas, no verão de 1901, arma-se de “um pouco de coragem” e vai até à cidade desejada, com o irmão Alexandre. Das suas impressões da visita fala com circunspeção na carta que envia a Fliess de Viena, a 19 de setembro. Não fala de inibição nem de superação, apenas de uma experiência de viajante que ficou um pouco aquém das expectativas, “como acontece com estas concretizações quando esperámos por elas durante muito tempo, mas, apesar disso, um momento culminante de uma vida.” Manifesta preferência pela Roma antiga e pela Roma moderna, “a Roma italiana”, e aborrece a “segunda”, a Roma papal, por “não suportar a mentira da redenção de uma humanidade que ergue os olhos para o céu”. Quanto ao resto, “fui modesto nos meus prazeres, não quis ver tudo nestes doze dias.”

Nos anos seguintes, “zeloso peregrino”, irá por diversas vezes a Roma. Não sabemos se terá alguma vez lamentado o tempo que perdera, ao pretender transformar literariamente uma coincidência na causa de uma inibição, um facto da vida na psicanálise de um facto.


[1] Sigmund Freud, Lettres à Wilhelm Fliess (1887-1904), Paris, PUF, 2015.

[2] Su Freud, Milão, Adelphi, 2012: 50.

[3] Marlène Belilos, Freud en ses voyages, Paris, Michel de Maule, 2010: 34. Ansermet analisa aí, em conversa com a autora, o episódio do lago Trasimeno.

[4] J. Laplanche, J.-B. Pontalis, Vocabulário da psicanálise, 3ª edição, Lisboa, Moraes,1976.

[5] Elisabeth Roudinesco, Sigmund Freud. En son temps et dans le nôtre, Paris, Editions du Seuil, 2014.

[6] Max Schur, La mort dans la vie de Freud, Paris, Gallimard, 1975.

[7] Numa edição posterior, talvez em 1909, Freud acrescenta a seguinte nota de rodapé: “Há muitos anos, aprendi que a satisfação deste desejo apenas dependia de um pouco de coragem, e tornei-me um zeloso peregrino a Roma”.

[8] The Interpretation of Dreams, The Basic Writings of Sigmund Freud, edição e tradução de A. A. Brill, New York, The Modern Library, 1939: 258-260. Existe edição portuguesa disponível: A interpretação dos sonhos, trad. de Manuel Resende, Lisboa, Relógio d’Água, 2009.