Cinco emergências, a partir de Stefan Zweig*

Prosa poética Clara Caldeira

I

O destino penetra invisível, através de milhares de portas e janelas e expulsa o sono; de cada leito afugenta o esquecimento. Há pouco quem durma no mundo; são mais longas as noites, mais longos os dias. Ninguém pode estar sozinho consigo e com o seu destino; cada um de nós espreita a distância. À noite, à hora em que jaz sozinho, acordado, na casa fechada e protegida, voam seus sentidos para os amigos, os ausentes; talvez que nessa mesma hora se realize parte do seu destino.

A insónia é criatura alimentada pela expectativa, uma demencial atenção ao futuro que mesmo no delírio do cansaço teima em não esboçar os seus contornos. Esperam os olhos, esbugalhados, por um dia de portas abertas. 

Fechados vão os mortos, parecem todos iguais. Agora também nós, os da vigília, devemos acompanhá-los no silêncio do nada: fechados, sem fala, sem gesto. Cobertos, quase sem nome. 

A insónia é criatura felina: aguarda quieta aquele discreto feixe de luz amplificado pelo mágico diafragma dos grandes animais. Para que se possa, enfim, caçar uma forma mais altiva de morrer. 

II

Incessantemente treme o ar, atravessado pelas ondas misteriosas, para as quais a ciência não tem nome e cuja oscilação nenhum sismógrafo sabe medir; quem ousará dizer que são impotentes esses desejos?

Como nomear o invisível sem adoecer? Como medir o medo com fórmulas? A ciência gagueja, a linguagem intoxica, o desejo desanima. 

Contágio, leito, ventilador, máscara, teste. Infectado, assintomático, emergência, calamidade. Obrigatório, autoridade, prevenção. Encerrado, dispensado, apoiado. Crise. Crédito. Suspensão. Liberdades. Guerra. Inimigo. 

Agora fala: à distância.

III

Nada, nada pode estar em descanso; a humanidade arrastou o animal e a natureza para dentro da sua luta assassina. 

Pássaros desconhecidos visitam a cidade. Os canais inundam-se de transparência. O azul recupera o seu lugar. 

Velhas metrópoles mostram-se imensas e abertas, intocadas, virgens por desflorar. É difícil crer em tanta inocência civilizacional. Volúpia súbita que cumpre em semanas desejos dantes atirados para as calendas. 

Incómoda, esta possibilidade de reconquistar. Sabemos que não teremos talento para sermos outros. 

IV

Sempre em algures existia o sono e o silêncio, sempre era possível encontrar criaturas que acordassem de manhã, a sorrir, depois de um sono profundo, sem sonhos. A humanidade, porém, quanto mais conquista a terra, mais intimamente se liga entre si; a febre sacode todo o organismo, o pavor toma de assalto todo o cosmos.

Procuro então essa intimidade que traz à boca a sede dos refugiados nos campos. A morte do samba nos morros das favelas. O cansaço das multidões indianas, sacudidas para as estradas. O ensurdecedor barulho das  bombas que não morreram do vírus. A azáfama chinesa na construção de edifícios mirabolantes. O americano ofegante em busca do cartão do seguro. Procuro então essa febril ligação num mapa sem fugas, ocupado exclusivamente por zonas vermelhas. Já não há aviões, mas as fronteiras cumpriram os muros, paredes-meias com o meu conforto, agora sim, sem lugar para sorrir. Finalmente, a geografia da catástrofe que somos surge em todos os ecrãs.

V

Os que regressam e os que ficaram saberão gozar mais alegremente a vida – mais graves e mais conscientes apreciarão seu valor e beleza; quasi que ansiaríamos pela nova evolução, se hoje como na antiguidade, as lajes do templo da paz não fossem regadas com o sangue das vítimas, e este sono bem-aventurado, restituído ao mundo, não fosse comprado com a morte de milhões dos seus mais nobres exemplares. 

Em curso, um saque sem precedentes: a certeza de sermos apenas isto, esta ordem que se chama mundial. Com culpa a crédito, mortos à distância, a terra no prego. Era, por assim dizer, um projecto de paz. Colonizado por existências mínimas e insensíveis, o império esboroa-se, sem a possibilidade de um abraço. Que fotografia guardámos dessa definição da espécie? Com que linhas narraremos tamanha derrota? Os que regressam e os que ficaram. Somos nós. 

*”O Mundo não pode dormir”, Agosto de 1914, do livro Encontros, 2º volume, in O Mundo Não Pode Dormir, Civilização Editora, Porto, 1940