Relicário do contágio

Ensaio Filipe Homem Fonseca
Desenho death_by_pinscher

1
Todas as paredes

         Andaram anos a dizer que tínhamos de pensar fora da caixa. Mas, em tempos de confinamento, o que temos de fazer é pensar dentro de uma.

         Fez-se assim, de feiura, alguma tormenta – veio vindo aos solavancos, chegou chegando em doses francas de incredulidade a vaga dos números, a pressa das análises, a falsa segurança das extrapolações, cálculos e previsões e cenários – e os rostos idos, guardados em caixas dentro de caixas, a reverberar: faça-se da perda uma vontade, da falta uma certeza, da antecipação um agora-já. Nunca depois, esse que muitos já não têm; e que somos nós mais que os outros? O que é de nós sem os outros, os que ficaram e os que partiram e guardamos em caixas dentro de caixas dentro de caixas?

         Sirenes e alarmes, relógios despertadores. Que o sono se foi: poderia ser de outra forma? O tempo arranja maneira de se intrometer nos dias, uma maneira única de marcar presença; se lhe faltam compassos, inventa-os, canta-grita por entre as fendas do descanso, esgota o corpo e anima o espírito. Tenhamos nós força para dançar
         (deste adormecer já não se acorda)
e sentiremos o chão por debaixo dos pés depois do tapete nos ser puxado. O equilíbrio é coisa extinta, o asteróide quotidiano vai tombando em pedaços, apocalipse em câmara lenta. Quantos partiram hoje? Que desgraça, que desgraça, que desgraça, e nós cá ficámos ficando, provas de vida, as possíveis da possível.

         Esta ruga é de 41 de Março, estas olheiras fundaram-se a 53 de Março e este sorriso do meu avô anunciou-se a 62. Nunca pensei voltar a vê-lo, nem ele a mim. Está nestes preparos, o calendário – avança sem sair do lugar, um retrocesso progressivo, contabilizado em insónias, para a frente é que é caminho. A ascendência dá-se como de costume, só que agora ouvimos a engrenagem da rotina a embalar-nos a falta de sono. O que fazer com o tempo que floresce na falta de espaço? Andar em círculos é coisa de loucos e moram todos nos espelhos das nossas casas. Janelas onde nos olhamos olhando quem nos olha. Os outros nunca foram tão reflexo nosso, a distância também funciona assim. Peixes no aquário, presos em redes sociais que nos enredam na sociabilização viável. Isco em cardume. Somos embrião, aconchegados em ansiedade amniótica. Com sorte e disciplina, nasceremos outra vez. Mais velhos.

2
Neo-escapulário

         Andaram anos a oferecer abraços grátis. Agora, na época do distanciamento social, higieniza-se o afecto. Convenhamos – o abraço tornara-se coisa banal, os dois beijinhos, o beijo único, o oscular de uns lábios. Proibido,
         (desaconselhado, perigoso, mortal, transgressor)
o acto tem agora o valor das coisas pelas quais estamos dispostos a morrer e, mais importante ainda, tem o valor das coisas pelas quais estamos fadados a salvar. Dentro de caixas, o toque tem o valor das jóias guardadas.

         E o que marcou a ausência de espaço no tempo dos rostos? O interior opressivo onde nos movemos cá fora parece mais vasto ou, pelo contrário, a paisagem é um beco?, dos generosos, com saída, pois o caminho para a fuga está sempre acessível entre uma batida cardíaca e o seu contrário, à distância de um capricho.

         O ritual da higienização. A máscara que guarda o sorriso dentro do choro dentro do esforço dentro do cansaço. Olhos espelho da alma, boca espelho da vida. Oculta, revela-se pela palavra: canto, grito e gargalhada. Resistência.

         Partículas de moléculas de ácido ribonucleico em caixa de lipoproteínas
         versus
         Heróis nas trincheiras.
         Aplausos não chegam, muito menos orações.

         Preço tão alto a pagar, o da sobrevivência: é que há sempre tanta gente que morre, é fila da frente
         (hipermercado, multibanco, farmácia; tantas urgências)
a que ninguém quer dar o peito, balas que nem vemos, nunca se vêem, rasgam com rapidez ou massacram com o vagar de um torturador experiente. A natureza também é feita de maldades, não lhes dá é esse nome, nome nenhum, rótulos é connosco. As coisas são como eram e são novas de cada vez que se repetem, em especial na primeira vez.

Desenho: death_by_pinscher

3
E se não nos devolverem o mundo?

         O mundo nunca foi nosso.

4
Mãos

         Andaram anos a dizer-nos para sentir, agora há que pensar, sozinhos com puzzles onde felizmente faltam peças, é a oportunidade que temos de inventá-las à nossa medida. Tesoura nos factos e cuidado na poda, não se faça do facto uma opinião e a coisa dá-se. Ponderar. Tomar o peso da realidade na palma da mão forrada a gel desinfectante. Mãos lavadas, dedos apontados com parcimónia: não foi só Pandora que abriu esta caixa.

         Resta-nos uma hora, e uma hora agora é um século de antanho – que luxo. E a hora é de fazer desfazendo, construir deitando abaixo, desfazer fazendo, destruir erguendo. Voltar a brincar na areia do parque, junto ao escorrega e ao baloiço
         (nas praias, drones afugentam gaivotas e gente; aqui há crianças a cair em risos).
Haja memória. Deste esquecimento não há cordel atado à volta do dedo que nos salve. Urge recordar tudo, daqui até ao futuro depois de nós. Vai correr com vagar. Teremos tempo, à antiga, é o que se quer para amanhã. E espaço para novas caixas, dentro de nós, fora daqui.

         Agora, há que fazer. Responsabilidade máxima: ser flor que rasga asfalto. Para que valha a pena. Não tem de fazer sentido, convém até que não faça, para combinar com o padrão imposto. Minemo-lo por dentro. Sejamos o vírus do vírus.

         Encólpio, forca ou gargantilha a dar falta de ar da sua graça, nó na garganta, um passo e outro e outro, até que se desfaça.