Daquela primeira primavera que não nos foi

Prosa poética Carolina Amaral

movimento primeiro 
De um dia para o outro, o dia é outro. Até agora era assim um dia depois um dia e depois um outro dia e não parava o mesmo dia de se suceder nos dias que viriam. Não éramos muitos a sermos felizes mas talvez não fôssemos muitos a sermos habitados por uma tristeza fundamental. Ou talvez sim. 
Mas havia sempre um jardim que era mais bonito que o nosso sofrimento. Ou uma ideia de a seguir, a seguir
a marcha era fenomenal. Um corpo de baile em coreografia do esquecimento primeiro. 
Todos continuávamos, porque todos sobrevivíamos. 
E quando havia uma queda era porque alguém se encontrava num espelho inesperado. Ora os espelhos inesperados eram como sombras que nos engoliam pelo que é de dentro, deformando o sonho que nos dava o nosso nome. 
Ninguém estava ausente para a fatalidade do seu encontro. Contudo fazer mais rápido e mais virtuosamente era suficientemente urgente. Tranquilizava-nos a noite, essa dança era para chegarmos à noite. Chegar mais depressa à possibilidade de suspender o amanhã para o amanhã que me já tem prometido. Uma geração que não verá a primavera acontecer.
Que chegou como uma febre, o tempo para encontrarmos o nosso nome num espelho coletivo.
Já não vamos para amanhã. De repente é o amanhã que se vira para nós de lá e nos confronta sem face, sem desenho coreográfico, abrindo-nos um abismo alto e desmedido. E a cada um, o seu rasgo rítmico. 
É que chegou o tempo da inversão da urgência. É nos pedido que nos aprendamos a ficar junto a nós. 
Que experimentemos a indefinição do que não nos ocorre. 
Que voltemos ao que não tivemos tempo de ser, à descoberta do desejo sufocado em sonos periféricos
Que aguentemos o acontecer de uma estação fora do que somos.

Movimento segundo 
Ela chegou, e eu não sei como é que foi não estar no mundo que tem a chegada dela. 
Confinada ao flagrante desconhecimento do que poderá ser o tempo novo da árvore, a desordenada oscilação do bosque, o presságio da ave que vem.
Foi-nos suspenso o tempo da beleza evidente.
Falha-nos uma primavera que acontecerá ainda assim, lá fora.

Movimento terceiro
Esta surpresa do peso de pensar nos nossos pais. Os meus estão lá no norte. 
Os pais pertencem sempre a uma província que nos é vagamente familiar de tal modo nos desajeitamos na tentativa frequente de sermos aos outros o esquecimento desse lugar. 
Há um desconsolo secreto nesta geração de pessoas que são pessoas longe dos seus pais
que estão fora da infância 
que não precisavam enrubescer ao atravessar a memória da cidade que os retém no que não deixarão de saber que são.
Fiz-me mais inteligente numa cidade a sul, numa cidade que não me contem, e que nunca poderá trazer-me a claridade dos primeiros pensamentos que tão à toa eram o que de mais surpreendente provinha de mim e me soube erguer
De que me vale a capital se é à margem da minha primária verdade?
Penso assim nos dois que ainda respiram porque lhes sou uma falha vital.
Não sei se quererei voltar a vê-los se posso ser o mal absoluto.
Os pais virarem crianças antes do tempo de virarem crianças. 
O medo do afeto que vai demasiado dentro, que é semente perversa, que pode matar a pessoa que fui que é o meu pai

Movimento quarto
quarto que já não é um quarto que já não é um quarto que é a minha cabeça. Ou espaço escuro deste dorso dorido. Ou a perna ofendida na colcha da noite que já é dia que já é de noite ou de dia. Que é uma pausa que é uma continuação que é uma certa pausa uma certa continuação

Movimento quinto
Quinta-feira podendo ser um dia aleatório, é de facto um dia aleatório na toada de dias internos. 
Percebo que nunca se me vertera tanto uma dada temporalidade, porém tento chegar à oportunidade de de mim propor um esboço fatal, que não há desculpas para falhar neste final. 
A competição do que poderei ser com quem eu tinha sido formula-se nesse confronto para dar cabo do que sobra. 
Que importa se nos fazemos cave agora se poderemos aprender da sobrevivência do que a cada qual realmente importa.

Movimento sexto
No teatro está a vir-se o acontecimento da mudez.
Este sustem-se ainda que como uma falha de comunicação, para o lado de fora. 
Talvez que o abandono se imagine a si mesmo agora que o dia mundial do teatro foi investido de pausa. 
Há concerteza uma revolução a acontecer, em ausência.
No mesmo dia o Papa foi um teatro vazio. Sinal alvo e signo de perturbação, falava a uma noite de uma praça que nos corpos em falta não poderia conter as suas preces. 
Orou ao vago que compomos um mistério pelo menos tão antigo quanto o lugar de onde se vê.

Movimento sétimo
Continuar a tentar chegar longe, por outro lugar.

Movimento oitavo
A cidade nunca esteve tão encostada a si mesma. 
Nunca houve tanto tempo para os jardins se descobrirem sós. 
Nunca a parede suou tão solitária. 
Nunca a altura dos postes se susteve tão próxima da meteorologia. Nem a luz se acendeu para os pássaros apenas. 
As estátuas respiram enfim.
Os animais vadios encontraram uma nova ideia de perdição. 
As pontes vão e vêm só por existirem. As estradas multiplicam-se em silêncio.
Ausentando-nos da cidade, as casas são agora cosmos que nos desterram das outras casas da experiência de flutuação nos corredores dos outros.
A cidade de até agora tornou-se o espectro de si e de nós.

Movimento nono
A minha cabeça já não cabe na casa. Ela não cabe em mim. Não sei se a cabeça, se a casa.
Páro o primeiro pensamento, o segundo, o terceiro, o quarto, mas não o quinto. Levo-o à janela, preparo-me para a despedida dele que quis ficar comigo, mas haverá outros pensamentos, haverá mais importante a oferecer ao esquecimento. Pensamentos perdidos que largo nesta altitude àquela que é a cidade mais fria, àqueles que foram os estranhos que me desconheciam, me fazendo.
A janela dá para um vazio que já mais não caminho mas por onde posso fazer soar sinais de que existo, ainda existo

Movimento décimo
Convivo com as minhas falhas acesas nesta divisão. Não temo a sua arrogância mas também não me sinto superior ao pior de mim. Aexperiência do entendimento com os meus recônditos infatigáveis tem sido um exercício quotidiano, que me não resolve esta angústia de me não escapar mais purificada. 
Não estou admirável. Não quero embrutecer fechada só comigo. 
Os meus erros, ardo-os mas não apagam, revirando-se em violência no meio inquietante.
Penso que esperam ganhar certa proeminência numa personalidade agora só.
Uma mulher que não se está a caber na sua solitária feminilidade, dá por si na primeira aprendizagem da vigilância do horror. Do horror de ser ser um si só por si.

Movimento décimo primeiro
Trago para o dia mulheres que sonho que são sinto de toque de seda. Reparo com os olhos fechados que são esquivas e subtis quando estão mesmo ao meu lado, por esse seu lado. 
Não as quero assustar mas não as quero esquecer. Desenho-as com esse ar intenso e doce junto a certas plantas a certa esquina de dentro. Convido-as para uma passagem bíblica, Isaías 27: “Naquele dia:/ Uma vinha bela; e um desejo de começar/ <a cantar> sobre ela./ Eu <sou> uma cidade robusta,/ Uma cidade sitiada;/ Em vão a regarei, pois será tomada de noite;”. Quero voltar à cidade da noite destas mulheres de sufoco. Não farei muitas exigências, mas que me deixem trazer a sua sombra para perto dos livros da tarde, que não se saiam da redondeza da leitura. 
Que estou tão grata por hoje ter uma imagem que é um corpo que está cá fazendo tanta falta na casa pouco imaginada.

Movimento décimo segundo
Prolongamento do estado de emergência, prolongamento das paredes nos espelhos e dos espelhos nestas paredes. 

Movimento décimo terceiro
As pessoas dizem que até estão a passar bem, para não dizerem que já se não aguentam tão despidos, é que tão desalegradamente interiorizados. 
A auto-descoberta tornou-se o ex-líbris da experiência selvática. 
Praticamos uma espécie de atividade radical quando nos carregamos pelos corredores, pelas salas, pelos tetos. O perigo é tanto o salto mortal de si próprio à sua imaginação, quanto o equilíbrio no continuar a seguir-se, ou o domínio das feras no que é coração.
Nestes dias as feras de mim são múltiplas.
Transformei-me como leitura num jardim cheio de fome, num desvairado zoológico de sons. 
Aceito a minha floresta, à falta da real primavera.

Movimento décimo quarto
já não sei qual a melhor inclinação à janela 
ou à beira dela
ou mesmo em mim
como me predispor ao remoer
de certas portas 

Movimento décimo quinto
De manhã vinda da tempestade vi uma coisa escura, que era quase uma sombra, maciça e voluptuosa, um tanto parada. A água da piscina não aquietava aquele corpo surgido do desassossego, e fui mais perto, mais perto até compreender que era realmente uma ave morta, uma espécie de animal da sabedoria que boiava nas águas perturbadas. Senti-me muito seca e ausente, próxima que me fiz do bicho desconhecido.
Quando tirei aquele símbolo da água não esqueci que os olhos estavam abertos e fixos numa extraordinária certeza que ainda me não está a acontecer,
e voltei para dentro, para um recolhimento que talvez mais profundo.

Movimento décimo sexto
regressamos à tragédia com máscaras de uma cirurgia irrealizável
mantendo espaço entre nós, haverá ainda um certo silêncio
esse seria o real discurso, do coro do contemporâneo

Movimento décimo sétimo
uma casa, uma cómoda, uma cadeira, um candeeiro, uma cabeceira
e um tempo e um som que tem peso e que tem um calor
uma tenda, uma tensão, um toldo, uma tempestade, um total alienamento
e um espaço e um caos aberto no terror
longe das fronteiras, nunca tanto me exerci na humilhação de não lá estar.

Movimento décimo oitavo
foi criado na República Checa, o festival do nada
a ideia basta-se.
poder-se-ia dizer que a obra foi exponenciada para lá de dentro dos seus fundos,
ou seja atingindo a perfeição no escuro.
em 20 20, a arte que não aconteceu
foi mais longe
Deus será este não visto que foi para além de si, e se auto-realiza

Movimento décimo nono
não deixa de ser intrigante, percebermos que hoje é quinta-feira santa
e que de santidade só temos que uma memória
impraticada, se bem que não desapaixonada.
não fazemos assim fila para a benção pascal
mas experimentamos esse alinhamento na espera
ordenada-ordenhada da grande superfície 
comercial, o único recreio 
e talvez o único cerimonial comunitário
do apartamento, o seu corolário.

Movimento vigésimo
Aquele que abrindo os braços, e o tempo dos braços e a mente do tempo e dos braços
nos ofereceu um desentendimento capaz de para sempre, nos largar num escuro completamente novo,
sobe-me hoje ao ventre com uma virulência capaz de me recomeçar, sei-o
no ventre que é o pensamento que é a condição de se ser entregue.
O sofrimento dele é hoje a minha consciência inteira. 
O signo da sua dor está marcado antes de se poder ser, e é a força de tudo
e do meu imenso nada, que é o espaço que me faz para O amar
como princípio final, que hoje me inicia 

Movimento vigésimo primeiro
trabalho num esvaziamento contínuo do que me conhecia 
durante a tarde que vai acontecendo, sinto a vergonha
da vacuidade de gestos sem alcance, de palavras meteorológicas, de intenções em malabarismo
e
transito para o transe do corpo alvamente erguido na cognosciência da Humanidade

Movimento vigésimo segundo
Alguém muito sério na televisão diz que até ao final do próximo ano não haverá normalidade. 
Já me tenho vindo a despedir do que veio até aqui. 
Havia uma condenação naquela forma de viver mas que me fez ao que vim ser. 
Percebo que o fundamental não me era uma evidência e que me escondia como se escondiam todos. 
E agora rachou-se o tempo que não prometia.
Começa a duração que contará para a real real possibilidade 
e enquanto apartadados, que nos reorganizemos
como se areja a casa quando vem o tempo bom,
e aguardemos o implacável que de nós advirá.
Secretamente por agora, se inicia já a procissão de nosso desvelamento.

Movimento vigésimo terceiro
quer dizer que vai durar até
dançar numas trevas exteriores 
ou estar perto, só isto
estar de novo, perto
normalmente

Movimento vigésimo quarto
Eu que pensava aproximar-me extraordinariamente
do meu potencial, camuflado até então,
descubro-me mais impertinente, mais vaga
e mais imprecisa do que alguma vez me via

Movimento vigésimo quinto
uma 
v
a
l
a
                    comum
No século XXI.
ou
Nova Iorque 
e a experiência última da morte.

Movimento vigésimo sexto
Seria expectável que os dias fossem lentos,
enjoativamente continuativos na sua imutabilidade,
apenas afectável pelos números a menos que delapidam a nossa última sanidade.
Mas os mesmos dias são velozes, escorregadios 
e experimento uma radicalidade emocional
pois que se me alteram o tom e perspectivas 
a um ritmo que o eu que eu era não consegue acompanhar.
Resta-me ser o que ainda não me consigo largar.

Movimento vigésimo sétimo
Parecia-me até agora que só ao vírus seríamos expostos como a uma fatalidade porque é por causa dele que estamos fugidos uns dos outros. Mas as outras doenças intervêm ainda mais secretamente do que a invisibilidade desta guerra que nos tem ocultos em novos interiores. E no entanto, há um rosto conhecido que nos fixa simbolicamente esta manhã. Um enfarte fulminante não devia esperar alguém nos tempos em que todos nos escondemos uns dos outros. No tempo do medo de sair não deveríamos ter medo do que está por detrás de nós. Mas percebo agora que o princípio e o fim de cada um não podem ser adiados por uma revolução que só pode ser que exterior. O máximo interior é também o máximo inescapável.

Movimento vigésimo oitavo
Depois do tempo do dentro, depois de sermos ultrapassados pela primavera, depois do estritamente essencial, depois da superior distância, depois do abandono do gesto do que se faz perto, depois das máscaras, depois da praça vazia, depois do medo, onde irei? 
Como me farei ao que fosse ou que seja a partir de agora o meu caminho? Afinal onde se encontra a verdadeira continuação? 
Haverá algum tipo de entendimento entre prosseguir e refundar? 
Sobretudo não creio poder evitar uma mudança assombrosa na minha eloquência.

Movimento vigésimo nono
Paro-me a meio num interior,
fixo a ignorância que tem aguentado os meus dias.
O silêncio das fronteiras
O silêncio das terras a sul.
O silêncio do cancro.
O silêncio das guerras.
O silêncio do subúrbio.
O silêncio dos velhos.
O silêncio dos violentos.
O silêncio dos que morrem por estes dias.
O silêncio da incógnita.
O silêncio do que podia ter sido o meu discurso agora.

Movimento trigésimo
Medito sobre o funcionamento novo dos lugares contemporâneos.
Um parque de estacionamento alberga inúmeros sem-abrigo distanciados por números escritos na calçada. Eis a renovada forma de catalogação dos que não são bem-vindos, tal como já foram catalogados na sua vestimenta, ou na carne, tantos outros indesejáveis que formalizam o horror canonizado da geração posterior. Como fomos esquecer do baile macabro dos números e os corpos e os outros. 
Estas pessoas algures no Texas, deitam-se em números, bem afastados do próximo em cimento e céu, e é assim legitimado o distanciamento destes que à vista de todos, sonham e comem e choram por cima do 3578, do 570, do 45, do 666.
Em Madrid um rinque de patinagem é agora oficiosamente, uma morgue. 
Armazenando os cadáveres no frio, trata-se da arca que inamovível, conserva os que estão já para lá da salvação. Trata-se de ironia, ou metáfora, já não distingo.
Em Tóquio, um aeroporto tornou-se hotel de cartão. 
Se a semelhança com um campo de refugiados não fosse tão evidente, poderia até não ser tão traumático, já que aqui é uma espera com saída. 

Movimento trigésimo primeiro
Nasci depois do 25 de abril, e da queda do muro de Berlim, quando Portugal já era mais União Europeia que estado periférico. Nasci no mês em que cientistas norte-americanos realizam a primeira clonagem de embriões humanos, em que o Nobel da Paz é atribuído a Nelson Mandela e no dia em que Mazzy Star lança o seu So Tonight That I Might See. 
Decido considerar as circunstâncias que me determinam enquanto mais uma, grandes ocasiões que vivi e que abalaram a consciência coletiva.
O 11 de setembro.
A emergência climática.
A Primavera Árabe.
Charlie Hebdo, enquando estudava no Conservatório de Paris.
A eleição de Obama, e depois a eleição de Trump.
A eleição de Lula, e depois a eleição de Bolsonaro.
A vaga migratória de refugiados na Europa.
A pandemia de Covid-19.
Até agora é esta a pequena lista dinamitosa.
Todas foram agentes provocadores que nos operaram algum tipo de pausa. E de agonia. E de mudança.
Fazer este exercício de perceber onde coincide o desastre com o desastre. 
Em todas estas ocasiões reparo
na formulação de uma espécie de desnivelamento que abala a hierarquia das nossas prioridades, dure pouco ou muito; 
na acordância de um sentido de comunidade que pode ser congregador ou estabelecer uma clivagem entre o nós e os outros;
numa melancolia associada à memória do que foi e que não continuará a tecer;
na ânsia de imergir no momento com total entrega como até então ainda não me dera;
e mais flagrantemente, na compreensão absoluta do não conhecimento efetivo da integridade de cada um. 
E é essencialmente esta última premissa que me faz deambular nos dias confirmando a minha incerteza de mim e que me implica na reinvenção que me é prometida a partir daqui.

Movimento trigésimo segundo
Ser dia mundial da Terra e entender-se que quanto mais desprezámos a cadência do mundo e nos inventámos realidades paralelas, mais nos é agora evidente recordar que este confinamento é uma farsa em comparação com a largada no que é irreprimível e irreverente no natural. 
Impedidos estamos do luxo que vimos transformado em lixo. 
Quem sabe se esta data passada em isolamento nos não enterneça perante a vítima dos nossos habituais dias corridos e assassinos?

Movimento trigésimo terceiro
A constância que me é garantida nestes dias é a dos pesadelos. 
Até agora nenhuma noite me foi faltada de um escuro susto.
E talvez esta seja uma das aprendizagens que mais proeminência me terá, a de continuar internamente aflita, mas erguida no meu recolhimento.
Hoje sonhei um lugar que quis empurrar à realidade.
Duas mulheres esguias que se impunham entre si como cavalos esticados, de pé uma em frente da outra, de joelhos levantados num ângulo de 90graus e em simetria, que encaixavam e relinchavam com véus espessos negros fechados atrás do rosto. 
Era a representação da apoteose de um amor à partida heterossexual, pois estaria escrito num tal livro algures, só que eram inevitavelmente duas mulheres o que conferia à leitura daquilo um magnetismo inegável para o acabar daquele espetáculo,— não me poderia esquecer daquela cena para que consequentemente influenciasse o modo como encararei as minhas próximas imagens criativas. 
Soube disto quando me recordei disto quando me preparava para me esquecer disto para agora sim, cair em mais um pesadelo que contribui para a minha batalha dos olhos abertos ou olhos fechados.

Movimento trigésimo quarto
pássaros que se não fossem reais eram fantásticos, encontraram a capital silenciosa.
como uma mancha superior, desceram a Navi Mumbai para beber
para dar conta da não construção,
da falta civilizacional.
um habitante chamado Purohit,
numa entrevista, reivindica 
o confinamento anual, em nome da chegada da nova paisagem natural. 

Movimento trigésimo quinto
Chegou o dia de abril. A data inultrapassável que é a do acontecimento da primavera de outras flores vermelhas que não são papoilas nem dálias. 
A da flora que se fez verbo pois que quem diz cravo, não pode que significar que uma intenção de romper. 
E talvez porque esta data me não foi uma vivência concreta, sinto a responsabilidade tremenda de atualizar a sua abertura às minhas fundações, pós-grandolianas. De prestar homenagem através do meu corpo que se tornou possível através da rebentação do pensamento de tudo, do vermelho para cá. 
Por causa do carmesim indisparado, tornado sinónimo de beleza, posso hoje reivindicar um lugar indefinido para aquilo que sou.
Vi hoje um documentário de quem no 25.04.2020 se procura fazer o tempo de abril no mundo, “Commander Arian. A Story of Women, War and Freedom”, sobre as Unidades de Proteção das Mulheres, YPJ, milícia composta por mulheres que resistem e lutam pela libertação dos territórios ocupados pelo Daesh no norte da Síria. 
Mulheres que querem constituir uma comunidade inclusiva, igualitária, livre. Emancipada. Jin, Jiyan, Azadi. Mulheres, Vida, Liberdade.  
Grito de guerra num território que não está confinado, e que importa reconhecer, que é também do nosso comprometimento. 
Aquelas mulheres que são o real rosto de abril no século XXI.

Movimento trigésimo sexto
Como nos E.U.A. se já injeta ignorância política pelo corpo adentro. a full, a fool ?
Que é esta ironia de uma intoxicação resultante da fé humana num star system
Não será televisivo sinónimo de poder coercivo ?
No que dá o populismo político, o viral mediático indo mais longe que o viral científico— a sentença de morte da noção da noção.

Movimento trigésimo sétimo
Em Samos, dois incêndios ontem à noite e um hoje de manhã que levaram a última réstia de sanidade higiénica e social de centenas de refugiados.
Proibidos de acederem às cidades agora caladas, brancas e vastas; deitam-se na terra ou no céu, tanto faz.
Se num espaço para 650 pessoas se encontram 7000, é já um triste tanto faz.
E quem não vê não toma parte deste horror. 
Só que o confinamento não é desculpa para a nossa nua culpa.
E no entanto apostaria que há mais quartos vazios que pessoas que não têm sítio para onde ir.

Movimento trigésimo oitavo
decidi plantar uma floresta.
e estou a ser realista. 
Isto não é uma metáfora.
de um abril confinado para o futuro, procuro o que me faço fundamental.
cansei da não urgência dos meus tempos.
percebi mais que tudo o que me ficou, que é preciso iniciar-me ao que tenho medo de mim.

Movimento trigésimo nono
tapar a boca. lembro que era assim que as freiras que me educavam exerciam a sua soberania. um gesto rápido e seco, batiam com as suas mãos límpidas os meus lábios disparatados. e castigo.
era para acalmar, ou no meu caso impedir.
não deixar acontecer por demasiado um pecado vocal. que podia ser só falar mais alto. podia ser só recusar-me a ficar calada. ou dizer uma verdade erógena, na minha desenvoltura infantil e tão possível.
exercitei tanto a língua sem pudor, como prazerosa afronta à religiosidade incompreensível que só me podia ser ainda e demasiado estranha.
desde aí que me apresento aos outros com a irrequietude desse músculo, de tal forma em preponderância na gesticulação do meu rosto que o que me fez, foi fazer da minha abertura frontal o sítio do meu sustento. 
o que já para uma comunidade é O lugar da expressão e que permite iniciar sentidos; no caso meu é a boca que pode espantar outros, que me permite a sobrevivência.
aprendi com as freiras a fazer da expressividade do pecado a garantia da minha salvação de todos os dias. o sacrilégio delas é o meu real rendimento. e o mais curioso é que, por me repararem um impulso que para elas era maldito, fizeram com que a minha inocência reconhecesse aí uma força que não mais abandonei. 
a febrilidade do meu pensamento corria-me à cavidade bucal com uma urgência vinda de outro lugar mesmo que o do meu raciocínio. e foi daí que aprendi a conhecer o que significa o santificado.
mais tarde
lembro-me de entrar numa igreja de burqa e de ser olhada com tamanha inquietação. 
tinha o longo manto negro na boca e talvez por isso transportasse comigo o simbolismo do terror nesse espaço do sagrado. queria testar a presença de uma expressividade tapada e feminina na igreja.
a mesma negação que me haviam imposto à boca corporalizava-se agora no espaço mesmo do culto.
apercebi-me de que me constituía um corpo de mulher condenado pela sua entrada porque impedindo entendimento. 
soube ali que não era o que poderia dizer que causaria escândalo e lamúria, mas era a verbalização de uma incompreensão qualquer que era o objeto profanante. 
que mesmo o meu irrompimento silencioso seria uma infâmia.
e que a máscara que nos aprendemos a usar desde tempos mais remotos que o do cristianismo está na censura que nos infligimos por receio de sermos incompreendidos e por isso apartados.
e o que muda efetivamente estando longe da comunicação factual num quotidiano social, seremos reaproximados mas com a distância das bocas? 
a partir de agora teremos de conviver em sociedade com um faixa frontal que não será mais do que a sinalização da distância que era já formalizada na convencional condenação ao adverso, diverso, inverso, verso, submerso. 
talvez se resgate uma vontade de chegar-se ao outro pela necessidade de uma comunicabilidade nova e mais essencial.

Movimento quadragésimo
penso então na coreografia do próximo dia. 
na desafetação, na geometria 
de uma distância múltipla. 
na fragmentação de uma gestualidade outrora ágil e temerária. 
e espero só 
que não seja assim.