A gaivota

Poesia João Paulo Esteves da Silva

A gaivota

Está um lindo dia para brincar com o vento
quem dera fosse sempre assim, regular e tenso,
ideal para planar de costas e depois, que delícia!
com um ligeiro mover de asas, parar no ar,
e ficar a ver a margem da cidade lá em baixo,
deserta, já sem turistas, o chão limpo,
uns raros transeuntes a trote, dois freaks, um cão,
aquele tipo careca a tirar fotos a poças d’água.
Sinto-me mesmo bem, parado, aqui em cima. 
E tenho comido menos lixo, ultimamente;
até reaprendi a pescar, e não me queixo,
sinto o hálito mais fresco, a peixe fresco. 
Por mim, ficava aqui em cima para sempre,
a ver a cidade vaga, olha! o cão dos freaks
teve agora um ataque de loucura, e
atacou um grupinho de gaivotas pousadas.
Que se avenham, o dono do cão que as salve.
Não se pense que há amigos entre gaivotas, 
cada um por si, somos um mar de solidões.
E se formamos bando, é sem ternura,
é só porque estamos programados para isso;
a solidão mantém-se. Roubamos ovos uns aos outros
e só não comemos os próprios filhos, enfim,
a verdade é que, às vezes, comemos os próprios filhos.
Este rio é das coisas mais belas, sem homens;
e está um dia lindo para brincar com o vento. 

(07/04/20)


Na prisão das laranjas,
deixa-se o corpo lá fora; 
entram só correntes de ar
e pássaros quase extintos. 

Marés doces, abstractas, 
sobem e descem com a hora.
Angústias secam nos estendais;
a eternidade e o tempo querem casar.

Vivemos mais, agora, que morremos,
por assim dizer, um pedaço;
depois, com a vida deixada nos portões
ainda havemos de voltar a discordar.

Será a altura de bendizer as letras
e as imagens que tiveram as saudades
em standby, ali ao pé, válvulas quentes,
prontas, no lado de fora do laranjal. 

(21/03/20)