Cidade isolada

Poesia Ana Freitas Reis
Fotografia Bruno Ferreira

CIDADE ISOLADA

O homem não dormia
agarrado em concha
as mãos solitárias da cidade
respirava fôlegos velozes
murmúrios dos sacrifícios da idade.
Levantava-se, vestia-se de breu.
O contágio com a pele acelerava-lhe o peito
o mesmo relâmpago que o perseguia na cabeça.
Ensaiava a canção repetida
uma espécie de chuva inundava-lhe o corpo
caíam gotas velando as plantas,
o silêncio escuro da madrugada
atava-se aos casulos do passado.
Dada a proximidade ao abismo da metrópole
o homem não dormia
as pálpebras do rosto inchado
coberto de rugas
memórias cruas
Os dentes como ventrículos
e a falsa sensação de estar vivo
mantinham-no calado.
Ao cair da aurora
suspenso na sua face perdida
à mercê dos tempos redondos
o homem não dormia
porque outrora o seu corpo havia sido
um movimento curto de uma visão sonâmbula
o seu sangue afiado correndo atrás de pensamentos livres.

Liberdade essa, que nunca chegaria,
sabia pouco de sono e de ilusão, cansada,
não despertara da tragédia enxertada nos ossos
e de um choque que o estrangulava.
De súbito
o homem não dormia,
ressuscitava.


MUDEZ

Esqueceram-se de contar
que a liberdade continuaria o mesmo invento
num tempo em que amar nunca havia sido tão derrapante
e, sem aviso, ser gente poderia ser uma tortura pálida

A saída seria a porta da ignorância
porque a tolerância
entre os gritos e as gargalhadas
dos loucos, dos líricos, dos cínicos, dos críticos explodiria na cabeça dos afectos

Esqueceram-se de contar
que chegaria o dia em que apenas se escutavam
as vozes soltas
o último sol da Primavera
Todos os versos seriam enterrados
a clausura como um cerco de sombras
ao redor do coração

E seríamos perseguidos
seguidos, influenciados, consumidos,
os vampiros das coroas podres
escravos do medo e do poder
aniquilavam a história
E não viveríamos mais hora a hora
pulsaríamos iguais em cada tempo,
espelhos em repetição automática

Esqueceram-se de contar
que abafariam o som de todas as canções
o pássaro azul não voaria mais da gabardine do Cohen
não subiríamos aos telhados dos vizinhos,
nada de assobios, nada de mãos dadas,
nada de árvores,
cobertas de negro
à beira da fulgência desaparecida,
as árvores contraídas como línguas
que um dia lamberam rios

Renovar e criar com ternura
deixaria de ser uma possibilidade
Respirar
entre a gentileza
e a chama erótica do corpo
seria o delírio da artéria selvática
imaginando longinquamente
a lâmina que outrora nos abriu os pulsos
A inexplicável trama das mentiras divinas

Esqueceram-se de contar
o que seria de nós quando desaparecesse o cheiro das chuvas da noite
quando não houvesse mais ninguém que trincasse as flores silvestres

A morte
tornar-se-ia uma ruga
como o espasmo quente da serpente
que não transformaria mais a sua pele
debaixo da pedra, já sem febre

O luto sempre precisou de pudor
Esqueceram-se de contar que agora se rende à fadiga,
apaga o fulgor da alquimia —
o silêncio frágil dos espaços

E esqueceram-se de contar
que os milagres só estariam
nas pequenas alegrias
nos passos dos que saltam juntos em círculos de fogo
nos imaginários de cada olhar atento.
O intervalo entre a audácia dos espíritos e o seu disparo
fraqueja as pernas perante as merdas de todos nós
deitam-se na cama pelo cansaço
esquecendo de contar
que a luta
seria este grande pedaço de lama
numa gruta que acabará num eco